Parece-me fascinante pensar que hoje, nos mais diversos países
do mundo e com os meios mais poderosos de que dispõe a
moderna tecnologia, se desenvolve uma luta para resolver em
conjunto problemas colocados há dois milênios e meio pelos
filósofos gregos e cuja resposta talvez venhamos a conhecer
dentro de poucos anos, quando muito, em uma década ou duas. 4 — Doutrinas Filosóficas e Teorias Científicas
4.1 Doutrinas e Teorias Doutrina é um conjunto de princípios que servem de base a um sistema. Ainda que existam semelhanças notáveis entre doutrina filosófica e teoria, diferenças sutis, porém importantes, são também evidentes principalmente quando nos referimos às teorias científicas. Sem dúvida, e neste caso, a diferença essencial reside no fato das teorias científicas apoiarem-se no método científico e, consequentemente, na experimentação. Não obstante, por trás dessa argumentação algorítmica, aspectos importantes e relativos tanto às semelhanças quanto às diferenças, acabam por ficar apenas subentendidos e, via de regra, ignorados. Alguns, dentre os princípios componentes das doutrinas filosóficas milenares, acabaram transmutando-se em afirmações que foram se adaptando à ciência, à medida em que esta foi se firmando como tal. Direi então que estes princípios, enquanto no âmbito da filosofia, podem ser chamados pelos cientistas como hipóteses metafísicas. Já no âmbito da ciência, modificados ou não, estes princípios podem assumir o caráter de hipóteses científicas e, neste caso, entrar ou não na constituição de teorias científicas. É importante que o cientista saiba, dentre estas hipóteses ou conjecturas que está valorizando, quais efetivamente estão assumindo o caráter de hipóteses científicas (provisórias ou definitivas) a comporem os núcleos das teorias que estuda. Diremos então que uma hipótese será tanto mais científica quanto mais sujeitar-se à experimentação, seja através de testes diretos, seja através de testes às teorias a que a hipótese dá suporte. Existem ainda as hipóteses implícitas, ou assumidas como tais, e deixadas de lado, seja devido ao seu caráter por demais óbvio, seja pela conveniência em deixá-las num segundo plano. Einstein, por exemplo, primou por desenvolver teorias com pouquíssimas hipóteses em seu núcleo, elegância esta raramente imitada, pois que não é fácil separar o essencial do supérfluo, do óbvio ou do redundante. Não obstante, e com frequência, estas hipóteses secundárias ganham importância ao reforçarem determinadas argumentações. Nunca é demais enfatizar o elevado teor metafísico comportado por grande número dessas hipóteses auxiliares. Conquanto a boa ciência seja aquela que conseguiu despreender-se do caráter doutrinário, o bom cientista é aquele que sabe dar o devido valor à filosofia e sabe localizar-se em meio às inúmeras doutrinas filosóficas existentes. A boa teoria nem sempre é aquela a respeitar os paradigmas vigentes. Pelo contrário, boas teorias são aquelas dotadas de um certo caráter revolucionário a contestar "verdades" até então aceitas como tais. Estas supostas verdades comumente saltam aos olhos do leitor desavisado como que a retratar uma suposta inconsistência da nova teoria. Nada impede que o bom teorizador, ao prever este comportamento crítico prematuro de seus leitores, teça inicialmente algum comentário sobre estas possíveis incompatibilidades entre a sua teoria e hipóteses outras a sustentarem teorias consagradas. Por outro lado, não há porque se preocupar em transformar negativas destas hipóteses em hipóteses assessórias a comporem o núcleo da teoria. Aliás, seria este um erro de natureza lógica. Às vezes a incompatibilidade mostra-se evidente não como ponto de partida mas como consequência natural no desenvolvimento da teoria. Tanto neste caso quanto no primeiro, quaisquer considerações a respeito deverão ser expressas no momento e local oportuno (considerações introdutórias, esclarecimentos intermediários ou discussão final). O importante, de qualquer forma, é que o teorizador conheça as hipóteses presentes em outras teorias e relacionadas a sua teoria, sejam elas compatíveis ou não; mesmo porque poderá aparecer um crítico imprudente a apoiar suas argumentações não nas falhas da teoria em si mas em premissas estranhas e não utilizadas pela teoria criticada. Não é impossível que a hipótese negada e/ou depreciada esteja inclusa entre os "dogmas de fé" aceitos pelo crítico e a denunciarem sua ingenuidade. Seria equivalente a combater uma teoria científica pelo fato dela ir contra uma doutrina aceita "a priori" como incontestável. Por incrível que pareça, "críticas" desse tipo são bastante frequentes, mas de maneira alguma valorizam a ciência. O que apoia uma teoria científica, sem dúvida, é a experimentação. Mas a experimentação, por si só, ou falseia ou corrobora uma hipótese e/ou uma teoria. Segundo Popper (1), uma teoria será tanto melhor quanto mais propensa for a testes de falseabilidade pelos quais, obviamente, terá que passar. Ao passar por um teste dizemos que foi corroborada. Vejamos então até que ponto devemos valorizar o falseamento ou a corroboração. O falseamento pode ou não ser convincente e pode ou não ganhar consenso. Não é sempre que a experiência, por melhor que tenha sido sistematizada, nos dá o controle absoluto da totalidade dos fatos intervenientes. A teoria gravitacional de Newton, por exemplo, chegou a ser "falseada" ao se perceberem efeitos estranhos e responsáveis por desvios aparentemente inexplicáveis na órbita dos planetas conhecidos na época, pois que eram provocados por planetas ainda não descobertos. Estamos aqui frente a falácias experimentais e não a um falseamento propriamente dito; não há também porque se falar, neste caso, em hipóteses "ad hoc", via de regra mal vistas em ciência. Ao pensarmos no possível falseamento de uma teoria devemos então considerar três possibilidades associadas: 1) No caso das teorias incompletas, e como comentado no item 2.1.7, o autor assume a existência de "variáveis escondidas" de natureza teórica e a comportarem uma certa lógica. Prevê, então, ou deixa patente, a possibilidade do encontro de desvios experimentais a surgirem com o aperfeiçoamento dos métodos de medida e/ou após a devida consideração das "variáveis" deixadas de lado. 2) O bom experimentador, por seu turno, deve dominar sua área de atuação, a ponto de, antes de propalar um falseamento, prever a possibilidade da existência de "variáveis escondidas" de natureza experimental como, por exemplo, os planetas desconhecidos do exemplo citado no parágrafo anterior. 3) As hipóteses "ad hoc", por sua vez, conquanto se prestem a refutar a falseabilidade, costumam ser mal vistas porque denunciam o despreparo do teorizador, a se apoiar num método de tentativa e erro, a se caracterizar por riscos evitáveis associados a perdas de tempo e ao encarecimento desnecessário da atividade científica. Não obstante, não é impossível que a ciência evolua às custas de teorias incompletas deste tipo e nem sempre de má qualidade. Corroborar uma teoria, por outro lado, nada mais é do que somar, à sua credibilidade, virtudes de valorização subjetiva. Não há como probabilizar este efeito, no sentido em que possamos dizer que a teoria ficou mais próxima da verdade por um valor mensurável. Seria como andar no interior de um túnel sem visualizar o seu fim. Sabemos que estamos progredindo mas não sabemos quanto mais próximos estamos do final do túnel. Sequer sabemos se este túnel tem ou não uma saída na direção e sentido em que estamos caminhando. É graças a isso que se diz, e estou aqui assumindo uma postura a se apoiar na doutrina racionalista, que o cientista é aquele que procura pela verdade. Assumimos esta postura ao acreditarmos que a ciência apoia-se única e exclusivamente no método científico e na crença de que ela ainda não atingiu a categoria de doutrina pois, a partir de então, não haveria mais porque permanecermos procurando pelas verdades. E é por isso que o tempo passa e as teorias caem, tão logo seus frutos tenham amadurecido. 4.2 Ciência na Antiguidade A ciência na antiguidade formava um corpo único com a filosofia e, em decorrência disso, não é fácil, utilizando-se os critérios atuais a delimitarem estas duas áreas do conhecimento, reconhecer uma autêntica ciência antiga a se apoiar na experimentação. Não havia a preocupação em distinguir doutrina filosófica de teoria científica, no sentido que hoje se dá aos termos. Pelo contrário, as experiências, quando passíveis de execução, destinavam-se mais a somar argumentos favoráveis a uma doutrina mais geral do que a propor leis particulares ou específicas. À medida em que os equipamentos laboratoriais foram se sofisticando, o ser humano passou a valorizar a especialização. Na antiguidade, graças aos parcos recursos experimentais, seguia-se um caminho inverso, a caminhar do geral para o particular. Ora, a observação do geral presta-se mais a argumentações do que a medições; e argumentos desse tipo prestam-se mais a críticas através do diálogo do que a contraprovas experimentais. E a sistematização dos conhecimentos assim adquiridos, ainda que eventualmente comprovados para casos particulares através da experimentação, assumia a condição de doutrina. Em essência, não há como distinguir o ideal perseguido por um filósofo da antiguidade daquele perseguido pelos proponentes das teorias científicas unificadoras, ainda que seus pontos de partida sejam, à primeira vista, antagônicos. É importante deixar claro que a experimentação não é exclusividade da ciência moderna. Experimentadores como Arquimedes, Erastótenes ou Heron não ficam nada a dever aos melhores experimentadores da atualidade. Houve, sim um novo enfoque dado à experimentação na atualidade, a propor uma delimitação entre o pretenso conhecimento objetivo produzido pela ciência e o conhecimento filosófico, a se apoiar num racionalismo subjetivo. 4.3 O atomismo na antiguidade grega O atomismo, do grego "atoma", a significar coisas que não podem ser divididas, é uma doutrina filosófica destinada a explicar fenômenos complexos às custas da associação de fatores unitários, diminutos, homogêneos, duros, incomprimíveis, indivisíveis e imutáveis ou eternos (2) (3). Há que considerar também um vácuo, ou espaço infinito e vazio, no qual estão em movimento perpétuo. O atomismo, num senso estrito, caracterizar-se-ia ainda por assumir átomos qualitativamente idênticos —a diferirem entre si somente em forma, tamanho e movimento— e a combinarem-se por justaposição (3). O atomismo começou com Leucipo (sec.V a.C) e foi desenvolvido por seu discípulo Demócrito (460-370 a.C). Há quem admita o atomismo como uma evolução das idéias de Parmênides sobre a unidade e imutabilidade do ser: O atomismo representaria, em sua origem, uma tentativa de reconciliamento entre a tese de Parmênides e a observação da multiplicidade e transformação dos objetos naturais (3); os átomos permaneceriam inalterados conquanto pudessem modificar suas maneiras em se associarem, em qualidade ou quantidade. Em algumas de suas versões o atomismo incorporou os quatro elementos básicos (fogo, ar, água e terra) da doutrina de Empédocles (490-430 a.C) e, em outras, a idéia, devida a Anaxágoras (500-428 a.C), de que existiriam tantos átomos diferentes quantas fossem as substâncias diferentes. Na doutrina dos quatro elementos de Empédocles encontra-se também a proposição da existência de duas forças de interação: "Amor", a unir os elementos, e "Conflito" a separá-los (4). A despeito de seu sucesso inicial, o atomismo não ganhou maior destaque entre o pensamento grego; não obstante, deixou raízes, de tal forma a se notar uma forte influência até mesmo entre os que o rejeitaram, tais como Platão e Aristóteles. Existe um perfeito entrelaçamento entre o atomismo e outras doutrinas ou correntes de pensamento que também exerceram forte influência no desenvolvimento das primitivas teorias atômicas (séculos XVII a XIX), quais sejam, o realismo, o mecanicismo e o racionalismo. O realismo denuncia-se não só pela aceitação da existência do átomo mas também por admitir a possibilidade de se chegar às propriedades fundamentais através da razão (racionalismo); e a descrição dessas propriedades em termos mecânicos (mecanicismo) impõe-se para que se chegue à adequada expressão da realidade (realismo) (3). Quanto ao relacionamento atomismo-racionalismo-realismo, nada melhor do que expor uma das máximas de Demócrito: Existem duas formas de conhecimento: o conhecimento autêntico e a opinião. Correspondem à opinião: a visão, a audição, o olfato, o paladar e o tato. O conhecimento autêntico é completamente distinto: quando o objeto é demasiado pequeno e não pode ser conhecido através da opinião, não pode ser visto, ouvido, cheirado nem tocado; quando se exige maior profundidade ao conhecimento, então atua o autêntico, que possui um instrumento para captar a verdade: o pensamento.(5) 4.4 Evolução do atomismo às teorias atômicas Nos primórdios da ciência moderna, o racionalismo grego era ainda a única maneira de perscrutar o domínio do infinitamente pequeno.Graças a essa limitação experimental, o atomismo parece ser o protótipo de área do conhecimento onde se nota, com maior nitidez, a evolução nos métodos de produção de conhecimentos partindo de um caráter puramente doutrinário, ainda aceito no século XVII, prosseguindo por vias filosófico-científicas, ora a privilegiarem evidências experimentais indiretas, ora a acoplarem argumentações metafísicas às novas teorias, até chegarmos nas modernas teorias atômicas da atualidade. Percebe-se, então, que esta área do conhecimento ainda não se libertou totalmente deste caráter doutrinário; e não é impossível que estejamos a meio caminho de perceber que o "átomo de Dalton está para os átomo de Demócrito assim como a nossa Galáxia está para a Terra" (6) Quem sabe seja este o motivo pelo qual a profecia de Heisenberg (7) [vide cabeçalho deste capítulo] esteja tardando tanto para se concretizar. O ponto de partida, a interessar os cientistas do século XVII a promoverem uma revisão no atomismo de Demócrito, parece ter sido a percepção manifestada por Galileu em 1638 sobre uma possível existência do vácuo. Até então prevaleciam as idéias de Descartes a negar o vácuo e a propor a existência dos vórtices criados por movimentos conjuntos de partículas, com cada uma ocupando sucessivamente os locais desocupados pelas outras. O vácuo foi demonstrado alguns anos mais tarde (1644) por Torricelli (8), discípulo de Galileu; e, a partir de 1658, Boyle (9) iniciou uma série de experiências a culminarem com a lei que recebeu o seu nome e a relacionar pressão e volume de gases. A partir destas experiências, Boyle convenceu-se de que os gases compunham-se de partículas sólidas associadas em moléculas, estando as diversas propriedades dos gases relacionadas ao tipo de associação. Newton chegou a expressar sua simpatia pelas idéias de Boyle nos seguintes termos: ... parece provável para mim que Deus no começo formou a matéria em partículas movíveis, impenetráveis, duras, volumosas, sólidas, de tais formas e figuras, e com tais outras propriedades e em tal proporção ao espaço, e mais conduzidas ao fim para o qual Ele as formou; e que estas partículas primitivas, sendo sólidas, são incomparavelmente mais duras do que quaisquer corpos porosos compostos delas; mesmo tão duras que nunca se consomem ou se quebram em pedaços; nenhum poder comum sendo capaz de dividir o que Deus, Ele próprio, fez na primeira criação. (10) Não obstante, e a despeito destas constatações experimentais, não tardou a emergir a idéia dos "pontos metafísicos de existência real" de Leibiniz (1646-1716), chamados mônadas. O argumento de Boyle somente chegou a ser expresso matematicamente oitenta anos mais tarde (1738) por Daniel Bernoulli, precursor da teoria cinética dos gases, teoria esta que chegou a ser rejeitada pelos físicos por mais de um século. Bernoulli, partindo de um modelo a considerar os gases constituídos por um grande número de partículas em movimentos rápidos e caóticos, deduziu a lei de Boyle, assumindo a pressão como decorrente do impacto mecânico das partículas sobre as paredes do recipiente. Concluiu também que ao receberem calor as partículas de gás movem-se mais rapidamente. Ainda que muitos físicos tenham se mostrado cépticos quanto ao ressurgimento do atomismo e sua evolução para uma teoria atômica da matéria, esta lentamente foi se acoplando à química experimental com Proust (lei das proporções definidas, 1794), Gay-Lussac (11) (relações volumétricas de gases, 1809) e Avogadro (12) (hipóteses a explicarem as relações volumétricas, 1811), estas últimas a complementarem a nascente teoria atômica de Dalton (13) (1803-8). A teoria atômica somente chegou a ser definitivamente aceita em química após a síntese efetuada por Canizzarro (1858), em que revigorou as idéias de Avogadro ao elucidar problemas relativos a notações químicas (fórmulas químicas destinadas a esclarecer como os átomos se associam em moléculas). A partir do trabalho de Canizzarro, Mendeleyev (14) construiu, em 1869, a primeira tabela periódica. Após os trabalhos de Mayer (1842) e de Joule (1849), a demonstrarem que o calor é uma forma de energia, os físicos enfim deixaram de lado a doutrina do calórico e passaram a se interessar pelos trabalhos de Bernoulli (1738), de Herapath (1821) e de Waterston (1845) relativos à teoria cinética dos gases, a qual se completou com os estudos de Clausius (1857), Maxwell (15) e Boltzmann (1860), a fornecerem as bases para as teorias atômicas da física atual.
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