Alberto Mesquita Filho
Editorial - Integração I(2):83-5,1995
A bem da verdade, em termos de Brasil, não existe autonomia universitária.
Autonomia, acima de tudo, implica na liberdade para se perseguir uma
vocação; que, se inerente a um complexo universitário, deve estar voltada
para a comunidade em que tal complexo se insere. Sob este aspecto, autonomia
universitária confunde-se com a busca pela integração
universidade-comunidade, o que não difere conceitualmente da tão comentada,
em tempos recentes, integração ensino-pesquisa-extensão. Grande parte de
nossas universidades não atingiram ainda este status por razões históricas,
e a darmos ouvidos aos críticos de respeito, existem dois modelos
universitários amplamente defendidos, que divergem deste ideal por vias
opostas:
- Algumas universidades estão vocacionadas a instaurarem sua independência,
com o que transformar-se-iam em centros soberanos do saber, alheando-se
desta forma do Estado ou, até mesmo, utilizando-se do Estado para ditarem
normas de conduta às demais. Bons professores e/ou pesquisadores seriam
apenas aqueles devidamente titulados por estas instituições de excelência.
- Em oposição às universidades soberanas, existem outras vocacionadas a se
acomodarem ao paternalismo de Estado e, por extensão, submeterem-se
científica e culturalmente às primeiras. Têm como meta, única e
exclusivamente, aumentar, ano a ano, sua pontuação com respeito a índices
que satisfazem aos paradigmas ditados pelos centros soberanos do saber.
A integração ensino-pesquisa é uma preocupação relativamente recente. Sob
certos aspectos retrata a revolução pós-positivista que se instaurou em
educação, reflexo da vitória do cientismo ideológico, impropriamente chamado
profissionalismo científico. Homens como Newton, Darwin, Faraday, Poincaré,
Einstein, e tantos outros, desconheciam esta preocupação, tão premente nos
dias de hoje, em integrar indissociáveis posto que, e como está implícito em
suas obras, ensino e pesquisa interligam-se através do espírito
universitário, algo indefinível, imponderável e imensurável, e, portanto,
alheio ao positivismo científico. Este espírito universitário
caracteriza-se, acima de tudo, por gerar o descontentamento que alimenta a
busca eterna do vir a ser, a mola propulsora da evolução do homem como tal.
Ser ou não ser é o seu estigma, posto que o espírito universitário, ou se
sente ou não se sente, a exemplo do educador: ou se é ou se não é.
Desprezado por representar o produto estéril de um romantismo superado, o
espírito universitário recrudesce hoje deturpado sob o rótulo de status
universitário, que, longe de o dignificar, transmuta-o para os orbes do
relativismo e, agora sim, em condições de mensurabilidade. Esta mensuração,
alheia aos princípios do positivismo utópico, e portanto longe de
representar uma evolução científica do conceito de educação, apoia-se nos
paradigmas do cientismo ideológico. Estes paradigmas, supostamente
científicos, têm tão somente a concepção errônea de ciência adotada por seus
divulgadores. Como exemplo, cite-se o paradigma da cultura administrativa
nacional: tudo que é oficial é supostamente confiável, e tudo que é
particular é objeto de desconfiança.
[1]
Dignos de nota são os comentários citados num dos últimos pareceres do
extinto Conselho Federal de Educação, de autoria do conselheiro Raulino
Tramontin [2]. Segundo Tramontin, parte da comunidade acadêmica brasileira,
principalmente aquela representada pela maior parte da produção de pesquisa
e ciência no Brasil, queixa-se da existência de universidades que não têm
apresentado comportamento institucional e acadêmico compatível com o status
universitário. Obviamente não é este o pensamento do relator do processo
396/94 do CFE que tomou o cuidado de deixar explícita sua posição a
respeito: Não se pode, por uma questão de justiça, fazer coro aos críticos
que consideram tudo "cartas de intenção", "achismos", etc. Não obstante, é
importante que o espírito do parecer, em especial a proposta apresentada em
sua página 5, não fique ofuscado pelo teor dos formulários anexados ao mesmo
e que, a bem da verdade, objetivavam efetuar a mensuração do que se
convencionou chamar status universitário. Estes formulários, diga-se de
passagem, pelo menos no que diz respeito à pesquisa e à extensão, estão
muito em acordo com os paradigmas aceitos por nossos críticos. Mas quais
seriam estes paradigmas?
A Universidade de São Paulo, sem dúvida alguma, responde
pela maior parte da
produção de pesquisa e ciência no Brasil. Podemos, sem receio de errar, em
que pese o fato de ela estar a nos dever a integração entre o ensino e a
pesquisa, considerar a USP o maior e o melhor complexo universitário da
América do Sul. Será que, deixando de lado as diferenças conceituais entre
universidade pública e universidade particular, isto a qualifica como
exemplo a ser seguido pelas instituições privadas? Destoa deste paradigma a
opinião de Thomas Shott (1993): Nenhum cientista brasileiro figura entre os
cerca de três mil mencionados como "principais contribuidores" ou
"significativamente influentes" em um survey de cientistas realizado fora do
país [3]. Dirão os críticos, e com razão, que a cultura científica brasileira
não pode e não deve ser avaliada única e exclusivamente pelo que pensam os
estrangeiros a nosso respeito. Será? Vejamos então a opinião, ou melhor
dizendo, o conselho que um emérito professor do Instituto de Matemática e
Estatística (IME) da USP, autor de trabalhos vários publicados no exterior,
deu a um de nossos autores por ocasião (1993) do lançamento de um de seus
livros: Este livro, editado em português e aqui, no Brasil, está fadado a
não ser lido por alguém em condições de criticá-lo. Por que você não faz uma
síntese e a publica no exterior? Este pensamento não reflete uma opinião
solitária, mas sim uma tendência geral, que é até mesmo defendida em aulas
de cursos de graduação da USP [4]. Um outro exemplo que reforça e extravasa
este argumento: Outro emérito professor, agora do Instituto de Física da
USP, interpelado por seus alunos sobre o motivo de não publicar um livro
sobre a matéria que lecionava, tendo em vista sua extraordinária didática
voltada ao ensino, respondeu: Os professores que nos últimos anos adotaram
essa linha de ação foram preteridos, em termos de títulos, para carreira
universitária, em relação àqueles que produziram papers
[5] (1991). Somemos os
fatos: a) Ensina-se na USP que um trabalho, para ter valor, deve ser
publicado no exterior; b) dizem-nos os estrangeiros especialistas em ciência
brasileira que os trabalhos publicados no exterior, por autores brasileiros,
não são significativamente influentes, ou seja, têm pouco valor científico;
c) estes trabalhos inexpressivos são, aqui, no Brasil, os mais valorizados
para efeitos de carreira docente universitária; d) os nossos cientistas são,
graças a esta sistemática, desestimulados a produzir uma ciência voltada à
realidade nacional, o que se reflete em nossa pobreza em livros didáticos
bem como na carência de revistas científicas sérias e que retratem essa
realidade; e) muitos, dentre os que defendem estes paradigmas, propõem que a
universidade particular adote este modelo para implantar a sua carreira
docente. Alguma coisa está errada. Somem a tudo isso três questionamentos
levantados pelo reitor da UNESP [6]: a) As nossas aulas do dia-a-dia estão, de
fato, contribuindo para a formação de profissionais que, além de serem
tecnicamente competentes, serão também socialmente conscientes do seu papel?
b) Ao lado da sua importância e contribuição para o avanço da ciência
universal, o trabalho realizado tem procurado equacionar problemas
enfrentados no cotidiano pela população brasileira? c) O mérito acadêmico, a
qualidade, têm sido valorizados adequadamente no seio da universidade?
É por meio do estímulo à pesquisa e, acima de tudo, à formação de
pesquisadores, que um país enfrenta os desafios ditados pelo tempo. Não
obstante, confundir pesquisa com produção científica é mais um dos
paradigmas a nos aprisionar ao subdesenvolvimento científico e educacional;
e a retratar nossa ignorância em temas importantes como, por exemplo, noções
básicas de economia. Responde, também, esta confusão pela desorientação de
nossos jovens, posto que estes somente atingirão o grau de verdadeiros
profissionais da ciência se abraçarem hoje o amadorismo científico inerente
ao espírito universitário. Por outro lado, produzir "ciência" apenas com a
finalidade de preencher formulários, é uma atividade alheia aos propósitos
educacionais e, como tal, deveria ser desestimulada pelo MEC, pelo CNE, e
pelos demais órgãos fiscalizadores das atividades das universidades.
Produzir ciência é um processo bilateral -- Universidade-Comunidade -- e
iterativo e, via de regra, será tanto mais satisfatório quanto menos papel
despender para seus propósitos. A universidade, a fim de atingir o status de
produtora científica voltada à realidade nacional -- extensão, -- deverá: 1)
aparelhar-se adequadamente; 2) estimular o desenvolvimento das ciências
básicas; 3) investir na formação de pesquisadores; 4) miscigenar-se à
comunidade local; 5) promover o desenvolvimento desta comunidade se e quando
a esta interessar; e para tanto 6) captar financiamentos da comunidade e/ou
dos órgãos públicos que a representam. A permeabilização dos canais
necessários para a consecução de seus objetivos não é um processo simples,
exigindo uma estratégia firmada em ideais que, conquanto variáveis de caso a
caso, alicerçam-se em três princípios básicos: amor ao próximo, fé em seus
propósitos e liberdade de expressão.
É muito difícil manter uma estratégia na ausência de diretrizes políticas
eficazes. E se, como é citado frequentemente por educadores de renome, não
existe uma política educacional brasileira, os educadores sérios devem
adaptar seus planejamentos estratégicos às contingências várias. Os ideais
também são mutáveis e, via de regra, à medida que a estratégia se mostra
eficaz, tendem ao aperfeiçoamento, e, com isso, a universidade evolui. Já os
princípios são por natureza própria imutáveis, sob pena de
descaracterizarmos nossa condição de humanos, posto que fazem parte de nossa
cultura milenar. Com efeito, os princípios que hoje norteiam a política
interna da Universidade São Judas Tadeu, são os mesmos firmados por nosso
Chanceler, há cerca de 7 anos, com o CFE, através de nossa Carta de
Intenções.
Fixadas as diretrizes desenvolvimentistas e respeitadas as regras que
definem o que se convencionou chamar autonomia universitária, seria de se
esperar que o status universitário de uma instituição de ensino superior
fosse estimado não por satisfazer aos paradigmas apontados por A ou B, mas
sim por sua evolução temporal em direção ao compromisso assumido junto aos
órgãos públicos competentes, quando de seu reconhecimento. O que fez a
entidade em prol da permeabilização dos canais inerentes à rota a ser
trilhada rumo ao cumprimento das metas propostas? O que era a Universidade
São Judas Tadeu há 5 anos e o que é hoje? E o que será no século XXI? Será
que as planilhas apresentadas, devidamente preenchidas, e deixada a
clarividência de lado, responderão a estas perguntas? E, se responderem, por
que então se multiplicaram o número de Comissões criadas pelo MEC em 1994,
uma para cada especialidade educacional, e submissas a paradigmas diversos,
posto que não existe uma política educacional brasileira? Por que tantas
planilhas e tão poucas atividades realmente orientadoras e/ou
fiscalizadoras? Será que a função principal da universidade é responder a
comissões de inquéritos? Não seria mais prático deixar a fiscalização e/ou
orientação a cargo de regionais estaduais capazes de acompanhar as
atividades das universidades, de forma contínua e dentro do contexto
sócio-econômico-cultural local? A comunidade teria muito a lucrar, pois
reduzir-se-iam as comissões de inquéritos, as comissões de credenciamentos,
as viagens a Brasília; o tempo gasto na discussão de assuntos que,
respeitada a curiosidade acadêmica, somente interessam às comunidades de
origem; o custo com processos que a rigor, passado o tempo de estudo, só têm
servido para atravancar os porões do CFE ou do MEC...; e a universidade
teria mais tempo para se dedicar às suas funções nobres. Tudo o que foi
relatado tem um preço, e todos nós sabemos quem paga. Só não sabemos a quem
tudo isso possa interessar.
Recentemente denunciamos
[7], no I Congresso Brasileiro de Gestão
Universitária, o jogo burocrático que satisfaz àqueles que pretendem sufocar
a incompetência em superar a crise educacional brasileira. Seguindo as
regras deste jogo, as universidades fingem que realizam pesquisas, e os
órgãos públicos fingem acreditar nas planilhas apresentadas. Como regra
complementar a esse jogo, nada se faz no sentido de facilitar, auxiliar e/ou
incentivar as universidades particulares para que as mesmas se coloquem em
condições de realizar o mínimo desejável ditado por suas vocações, seus
propósitos, seus compromissos com a comunidade, enfim, sua real, efetiva e
tão sonhada autonomia.
Foi em busca desta autonomia que a Universidade São Judas Tadeu optou não
apenas por denunciar as falácias do sistema, mas também, e principalmente,
por investir na comunidade que representa, aparelhando-se para que possa em
futuro próximo integrar o ensino à pesquisa e à extensão, condições
indispensáveis para a iniciação e efetivação do regime de pós-graduação. De
acordo com a estratégia apresentada, contamos hoje com um campus devidamente
equipado e um setor de pesquisas em fase final de implantação, e em
condições de, nos próximos anos, fornecer as bases para que possamos
equacionar o relacionamento pesquisa-extensão. Sob este aspecto, não é
demais enfatizar que qualquer sugestão, de elementos que militam nos vários
setores dos órgãos públicos, será bem-vinda, e que o que esperamos destes
órgãos não é um título que nos qualifique como hábeis preenchedores de
planilhas, e, sim, uma orientação e a disposição dos mesmos em encarar a
universidade particular como um membro efetivo, ativo e importante da
realidade educacional brasileira.
A.
M. F.
- Pereira de Souza, Paulo Nathanael,Estrutura e
funcionamento do ensino superior brasileiro, Livraria Pioneira Editora,
São Paulo, 1991, p.106.
- Parecer n.° 396/94 do CFE, Proposta de instrumento para renovação de reconhecimento de universidades, nos termos do art. 2.° do Decreto-Lei 464/69. Aprovado em 4/5/94.
- Schott, T.: Performance, specialization and international integration of Science in Brazil: Changes and comparisons with other Latin America and Israel, frase transcrita de texto anexado à p. 12 de Schwartzman, S. e al.,
Ciência e Tecnologia no Brasil, Uma nova política para um mundo global, São Paulo, novembro de 1993, trabalho realizado por solicitação do Ministério da Ciência e Tecnologia e do Banco Mundial.
- O autor deste editorial frequentou dois cursos de graduação e um de pós-graduação na USP e, como médico do Corpo Clínico do Hospital das Clínicas da USP, ministrou inúmeras aulas bem como acompanhou durante onze anos o regime de internato da Faculdade de Medicina da USP.
- Já comentado em Integração 1:76-7, 1995.
- Macedo, Arthur Roquete de.: Mais verbas, compromisso renovado, OESP, 27/7/94, p. A2.
- Mesquita Filho, A.: A Pesquisa na Universidade Particular: Um Desafio a ser Vencido, I Congresso Brasileiro de Gestão Universitária, IBRAQS, 13/8/94.