Alberto Mesquita Filho
Editorial - Integração III(10):163-5,1997
A leitura [da Lei n.° 9.394] lembra um
pouco a Constituição de 88 com suas declarações
pomposas e irrealizáveis, que podem acalentar
sonhos, mas mudaram pouco a realidade.
José Goldemberg (*)
Há quem diga que "a universidade não pode parar". Um simples exemplo talvez
seja suficiente para promover um breve "curto-circuito cerebral" nos que
assim pensam: Em 1666, em virtude da peste negra que assolou a Inglaterra, a
Universidade de Cambridge cerrou suas portas. Um jovem pesquisador de 23
anos de idade, cujo nome era Isaac Newton, abrigou-se na fazenda em que
nasceu (em Woolsthorpe), o tempo suficiente para criar o Cálculo Diferencial
e Integral, bem como para chegar às suas leis do movimento e da gravitação.
Como resultado dos estudos efetuados em sua solidão acadêmica, Newton
publicou, 21 anos mais tarde, sua monumental obra. Muito do que hoje se
realiza nas universidades faz sentido, tão somente, graças ao produto desse
laissez-faire newtoniano.
Poderia citar, também, as pesquisas de campo, a originarem
insights em
cientistas que, não por obra do acaso, deram chance a que suas mentes se
iluminassem —exatamente em razão do afastamento do ambiente universitário—
em viagens de estudos, verdadeiros períodos de semi-lazer. Não raramente,
regressaram, de suas andanças, com idéias que redundaram em magníficas obras
como, por exemplo, a Evolução das Espécies, de Charles Darwin.
Há que se considerar também o caso dos cientistas amadores: Muitos destes,
afugentados do convívio acadêmico por motivos vários, retornaram de seus
refúgios com obras dignas de terem sido produzidas nas melhores
universidades do mundo, não obstante terem sido geradas em meio a afazeres
profissionais. Lembro-me, a respeito, do jovem Albert Einstein, um "reles"
funcionário de um departamento de patentes que, em 1905, aos 25 anos de
idade, assombrou o planeta com três teorias que, por todo o século XX,
ditaram normas de conduta a uma infinidade de pesquisas acadêmicas.
Percebam que nem cheguei a falar em Galileu, ou Freud, ou Marx... Mas antes
que você conclua que a ciência evolui, "apesar" das universidades, uma idéia
com a qual não concordo, vamos entrar no tema deste Editorial.
20 de dezembro de 1996: Em meio ao corre-corre alucinado —que ano a ano se
repete— a anunciar que, muito em breve, o Brasil iria parar, uma notícia,
há muito esperada nos meios acadêmicos, foi estampada nas primeiras páginas
de todos os jornais nacionais: Aprovada a nova Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB-96).
Antes que os nossos parlamentares fixassem a estratégia a canalizar, em
benefício próprio, a satisfação popular por tão patriótico esforço do
Congresso Nacional, uma reação, quase em uníssono, ecoou por todos os
rincões do país: Este filme eu já assisti! Moral da história: Cada Congresso
tem o povo que merece. Exceções à regra pipocaram aqui ou acolá: poucas
críticas e algumas defesas; estas últimas, a contemplarem não a LDB —que
segundo alguns é uma versão deturpada do projeto original— mas o autor do
projeto, o senador Darcy Ribeiro, eminente e polêmico educador nacional,
recentemente falecido.
O ano de 1997 começou sob a égide desta nova lei. As primeiras reações,
captadas nos meios universitários, não foram muito efusivas. Pelo que pude
constatar, o universitário paulista, como resultado de uma primeira leitura
dos termos da lei, ficou com a impressão —além daquela sensação de dejavù,
já comentada— de que, sob o ponto de vista educacional, muito pouco mudara.
E isto, levando-se em conta que vivemos no país que tem a pecha de não
possuir uma política educacional, é bastante desanimador. Novas leituras
foram feitas e, tão logo o carnaval passou, o universitário brasileiro
começou a se dar conta de que o senador Darcy Ribeiro que, como acadêmico,
extasiou platéias ao discursar sobre "O óbvio", estava, de seu recanto
extra-mundo, a rir de nossas primeiras interpretações.
Nada de ufanismos: a lei está repleta de falhas, e o brasileiro, a começar
por aqueles que nos impingem tais leis, não é, via de regra, muito
legalista; consequentemente, a maioria destas falhas não passarão pelo
crivo evolucionista. Nada, também, de pessimismos: a lei está repleta de
virtudes e, em suas entrelinhas, convida-nos a que repensemos, seriamente,
na educação do país.
Chegado o mês de março, os universitários começaram a se dar conta de que
algo de muito sério estava por vir e, em meio a essa constatação,
observou-se uma correria por esclarecimentos. Antes do primeiro de abril, já
era grande o número dos defensores da idéia de que quase todo o nosso
passado legislativo-educacional estava prestes a se converter em peça de
museu. Revolução é o termo correto a se aplicar a episódios históricos que
se iniciam desta forma. Mas... estará a universidade brasileira preparada
para esta revolução educacional?
A verdade, nua e crua, é que 1997 entrará para a história como "O ano em que
a universidade parou". Se não de fato, se não de forma organizada, se não em
seus objetivos básicos, pelo menos em sua evolução organizacional, o que se
depreende pela simples constatação de que, praticamente, todos os educadores
de respeito, por vários momentos no decorrer deste ano, deixaram de lado
seus afazeres costumeiros para se dedicarem, com afinco, ao estudo de uma ou
de outra dentre as inúmeras consequências advindas da nova legislação.
Em abril o poder executivo deu o ar de sua graça, e começaram as
regulamentações. Há que se destacar os Decretos 2.207 e 2.208 (15 e 17 de
abril, respectivamente). O primeiro, com seu ar de neoliberalismo
neotupiniquim, a neoglobalizar a novel legislação educacional; e o segundo a
redimensionar os já desgastados problemas com a educação profissionalizante.
Se algum educador, até então, estava alheio às profundas modificações em
gestação, estes decretos, e em especial o primeiro, tiveram o mérito de
despertá-lo para a realidade.
Maio foi o mês dos Encontros. Encontro aqui, encontro ali, encontro acolá,
e, quero crer, entre um encontro e outro, reuniões locais de esclarecimentos
e/ou com a finalidade de analisar o conteúdo de um encontro e/ou de preparar
a estratégia para o encontro seguinte. Para uma universidade que não tem a
verba do MIT —para não dizermos que não recebe verba governamental nenhuma—
e cuja massa crítica circulante é proporcional aos parcos reais devidos por
seus alunos —os quais, a bem da verdade, sacrificam-se terrivelmente para
cumprir estas escassas obrigações educacionais— não é difícil concluir o que
aconteceu com sua mirrada produção científica.
Lembro-me de um encontro que se deu nas Arcadas, no Largo São Francisco,
mais especificamente, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Teatro lotado, fileiras de cadeiras improvisadas por todos os lados,
ilustres conferencistas a representarem os vários escalões
político-educacionais do estado de São Paulo e, em particular, eminentes
juristas a contemplarem cada uma das especialidades que o momento requeria;
na platéia, paletó e gravata, educadores de toda a parte. Dos primeiros,
captei a maior de suas preocupações: a de se constatar, dentre os inúmeros
artigos conflitantes do Decreto 2.207, quais eram simplesmente ilegais, e
quais eram inconstitucionais; e tudo isto num clima de perfeita harmonia, de
completa resignação e de total aceitação. Dos demais, além da incredulidade
com tamanha desfaçatez, a kafkiana preocupação em conviver, sem se postar à
margem da lei, num clima a lembrar da recente peça teatral: Se correr, o
bicho pega, se ficar o bicho come.
Alguns não se deram por achados. É de se realçar a posição do presidente da
Associação Brasileira dos Mantenedores (ABM) que, durante os meses de maio e
junho escreveu, com constância quase semanal, a todos os mantenedores de
instituições particulares de ensino superior do país. Em todas as
correspondências, reafirmava o que já houvera exposto em reunião do SEMESP:
a intenção do ministro da educação em rever alguns dentre os inúmeros
artigos inconstitucionais do Decreto 2.207. Solicitava, então, que nada
fosse feito até que se promulgasse tal revisão.
Contrastando com a preocupação das instituições filiadas à ABM ou ao SEMESP,
os educadores, que militam nas universidades que recebem polpudas verbas
governamentais, começaram a enxergar a realidade por outro ângulo. De março
a junho, inúmeros foram os encontros promovidos com a finalidade de estudar
as consequências da nova legislação sobre: o financiamento de pesquisas, a
nova política de bolsas do CNPq, o repasse de verbas, etc. Alguns chegaram
mesmo a propor inusitadas reformas constitucionais, posto que a nova
legislação, se por um lado feria a Constituição, por outro insistia em
regulamentar alguns dos tópicos não muito apreciados pelos agentes do
corporativismo científico do país.
Se existem, como vimos, quesitos ilegais e/ou inconstitucionais, tanto a
nova LDB, quanto suas regulamentações, insistem —e nem precisariam fazê-lo—
em reafirmar alguns dos sábios ingredientes de nossa Constituição. Digno de
nota é o chamado princípio da indissociabilidade ensino, pesquisa e extensão
que, a bem da verdade, e num país que preza pela educação, não precisaria
nem mesmo constar da Constituição. Seria suficiente que a Constituição
definisse, como dever do Estado, os critérios mínimos de educação.
O ensino e a pesquisa, é bom que se diga, devem ser estimulados não apenas
no ensino superior, mas também na educação pré-primária; e eu iria além: até
mesmo na educação familiar. Ser pesquisador, bem como necessitar de cuidados
educacionais, é o que nos diferencia dos animais irracionais. Por que,
então, alguns educadores, em especial, os das universidades públicas, estão
propondo a abolição do princípio da indissociabilidade entre ensino,
pesquisa e extensão? Será que eles entenderam o real significado deste
princípio? Será que eles sabem qual é o verdadeiro papel a ser desempenhado
por uma universidade?
Para os que não sabem, o objetivo primário de uma universidade não é
realizar pesquisas mas, sim, formar bons professores, bons pesquisadores e
bons extensionistas e/ou profissionais. As entidades, que têm por objetivo
primário a realização de pesquisas, são os Institutos de Pesquisa como, por
exemplo, o Instituto Butantã. Excelentes pesquisas podem ser feitas, como
vimos, até mesmo com as universidades fechadas; e isto porque, quando
abertas, formaram excelentes pesquisadores.
Mas, se não é objetivo primário, de uma universidade, realizar pesquisas,
pergunto —e é esta a pergunta que deveria preocupar os nossos educadores:
Para atender aos seus objetivos fundamentais, a universidade deve realizar
pesquisas? Se sim, justifica-se a criação de setores de pesquisa em todas as
universidades, e não apenas nas públicas; se não, o povo está sendo
espoliado em seus recursos. Durma-se com um barulho desses.
Julho é mês de férias no Brasil, e se é verdade que a universidade parou, os
educadores, que militam nestas instituições, trabalharam bastante. É justo
portanto que descansem, participando ativamente da reunião anual da SBPC. E
enquanto agosto não chega, penso aqui com os meus botões: Que acontecerá a
partir de 20 de dezembro de 1997, quando entrará em vigor o artigo 87 da
nova LDB: É instituída a Década da Educação, a iniciar-se um ano a partir da
publicação desta Lei.
Para o país que não possui —e gostaria de dizer, não possuía— uma política
educacional, é folclórico constatar: nenhum país do mundo teve tantas
décadas da educação quanto o Brasil. Clamo, então, aos membros de nossa
coletividade científico-educacional, para que continuem, de agosto a
dezembro deste ano, a se prepararem; a fim de que esta, que não será a
primeira, venha a ser a última década da educação; e para que os nossos
netos possam, um dia, se vangloriar de viverem no país dos nossos sonhos. E
tudo isso, porque 1997 foi o ano em que a universidade parou... para pensar.
A.M.F.