Sobre o amadorismo em ciência
Alberto Mesquita Filho
Editorial - Integração X(37):95-6,2004
O amadorismo científico nem sempre chega a ser muito bem visto pelos acadêmicos. BERNSTEIN
[1], por exemplo, relata que muitos, dentre seus colegas profissionais da ciência, chegaram a se sentir ofendidos quando Barzun comparou a ciência a uma
atividade lúdica, ou a uma gloriosa diversão. Quero crer que isso esteja relacionado a um problema cultural de amplas proporções e a relacionar-se aos paradigmas próprios ao que se convencionou chamar economia
moderna, a economia após Adam Smith, assunto esse analisado em profundidade por Kenneth LUX
[2] (1993). Até mesmo a visão paradigmática de Thomas Kuhn parece-me estar contaminada por uma imagem distorcida do que venha a ser profissionalismo, e decorrente desta
modernização da economia. Ora, se pensarmos em amador como uma palavra a representar aquele que
gosta do que faz, ou que aprecia o que faz, ou que é entusiasta pelo que faz, não me parece que
profissional seja um antônimo perfeito de amador pois, se assim fosse, o profissional viria a ser aquele que
não gosta do que faz, aquele que faz por obrigação, um verdadeiro
escravo da sociedade ou do governo. Sem dúvida alguma, a economia
moderna não está muito longe de sufragar esta idéia e o academicismo também não está muito longe disso, a serem verdadeiras as denúncias de Brian MARTIN
[3]; mas, a bem da verdade, o profissional da ciência não só pode agir de maneira amadorística, como também deve pensar nessa possibilidade com bastante seriedade. O amadorismo tem se mostrado essencial e necessário para o progresso das ciências, e é neste sentido que POPPER afirmou que
só há um caminho para a ciência [4].
É interessante notar que Thomas KUHN
[5] dedicou um capítulo inteiro de um de seus livros para expor a sua
ciência normal como uma atividade lúdica, sem que ninguém tivesse se sentido ofendido com isso, ao contrário do exposto no parágrafo anterior. Esta diferença comportamental não se dá por acaso. Isso, a que Thomas Kuhn propõe como atividade lúdica, não tem o significado pleno assumido por Barzun, faltando aí aquela pitada de amadorismo flagrada nos escritos de Popper. Com efeito,
o objetivo da ciência normal de Kuhn, utilizando suas próprias palavras,
não consiste em descobrir novidades substantivas de importância capital. Consequentemente, e analisado sob este prisma, o prazer por novas descobertas praticamente inexiste nos períodos de
ciência normal. Eliminado este prazer, estaríamos como que “enobrecendo” a ciência e, ao mesmo tempo, nivelando o cientista à condição de servo ou, em outras palavras, um profissional requintado e pago pelo Estado para satisfazer os paradigmas próprios à economia
moderna.
Um segundo aspecto a enfatizar a ambiguidade entre amadorismo e profissionalismo, diz respeito ao que poderíamos chamar objetividade da ciência. A ciência, pensada como um produto acabado ou, até mesmo, subdividido em disciplinas, sem dúvida alguma se impõe através de objetivos bem definidos e a alicerçarem uma tecnologia. Mas que dizer sobre a produção de novos conhecimentos científicos? Poderíamos deixar a intuição de lado? Ou então, haveria como objetivar a intuição? Será que em prol do objetivismo poderíamos, a exemplo de Kuhn, deixar a intuição totalmente à margem da ciência, se não para sempre, pelo menos nos períodos que ele chama de
ciência normal? Parece-me que muitos, dentre aqueles que produziram conhecimentos científicos de elevada qualidade, jamais concordariam com este objetivismo kuhniano. Citarei apenas três, mas não me parece ser impossível expandir esta relação para a casa da centena ou mesmo do milhar.
Uma das frases célebres de um grande cientista do século XX, Carlo Rubbia, poderá ser encontrada em meio a entrevistas que deu logo após ter recebido o prêmio Nobel de física, em 1984:
Nós somos a primeira etapa do sistema. Uma etapa absolutamente essencial, mas que é baseada, sobretudo, na falta de um fim específico. Outras pessoas retomarão o que fizemos, e serão elas que tornarão as coisas práticas. Sem nós, essas pessoas não existiriam, e nós, por outro lado, sem elas, não teríamos nenhuma razão de ser [o grifo é meu]. O outro exemplo relaciona-se a um dos maiores —senão o maior— cientistas do século XIX, que teria dito algo semelhante e a fazer parte do folclore científico. Conta-se que Faraday, ao ser interrogado sobre as finalidades de uma de suas teorias, teria respondido com outra pergunta:
Para que serve uma criança ao nascer? Há quem ilustre essa história com outra versão e não é impossível que ambas tenham de fato acontecido. RUMJANEK
[6] (2004), por exemplo, narra o episódio com as seguintes palavras:
... o então ministro das finanças da Inglaterra, William Gladstone, teria perguntado ao cientista: “Está tudo muito bem, mas para que serve a indução eletromagnética?” A resposta de Faraday: “Eu não sei, mas um dia o senhor poderá cobrar impostos sobre isso.” A história mostrou que Faraday estava com a razão. As teorias de Faraday alicerçaram quase toda a tecnologia do século XX. Se hoje um determinado país pretender eliminar os impostos consequentes à aplicação tecnológica das idéias de Faraday, este país estará se condenando à insolvência em poucos meses. Para concluir, reproduzo o pensamento de um físico teorizador português, João MAGUEIJO
[7] (2003), e deixo o mesmo para a reflexão dos leitores: a ciência só vale a pena na medida em que nos é permitido perder-nos na selva do desconhecido.
Outro ponto a demonstrar a importância do amadorismo para a ciência relaciona-se ao clima e/ou ao ambiente em que se deflagraram as grandes revoluções científicas da era moderna. Muito mais do que a falência dos paradigmas, considerados por alguns como os agentes causais dos chamados períodos revolucionários, o que a história nos mostra é exatamente o oposto: a maioria das revoluções teve em comum o fato de se originar fora da jurisdição onde tais paradigmas eram dogmatizados e/ou cultuados. Einstein, por exemplo, escreveu seus principais trabalhos (relatividade restrita, efeito fotoelétrico e efeito browniano) na qualidade de funcionário secundário de um departamento de patentes, ou seja, como um físico amador. Mayer e Carnot, o primeiro como profissional médico e o segundo como profissional engenheiro, indiferentes ao academicismo vigente, forneceram as bases para a revolução em física que, na primeira metade do século XIX, deu origem à termodinâmica. Faraday foi outro cientista amador que somente chegou a ser aceito nos meios acadêmicos após ter fornecido as bases para a concretização do eletromagnetismo, o que acabou acontecendo graças aos trabalhos de Maxwell. Há ainda aqueles que, por motivos diversos, deixaram seus afazeres rotineiros de lado, podendo assim se dedicar a um livre-pensar alheio aos paradigmas acadêmicos. Os melhores exemplos são Charles Darwin, em sua viagem no Beagle (1831-1836), financiada por seu pai, e Isaac Newton, que iniciou uma revolução na física no
annus mirabilis (1666), o ano em que as universidades da Inglaterra fecharam suas portas em virtude da peste negra. Digno de nota é o fato de Newton, ao retornar à universidade, ter sido obrigado, para atender a uma obrigação contratual, a deixar de lado esses estudos por mais de dez anos, a fim de que pudesse se dedicar com afinco ao aprendizado de teologia
[8].
A.M.F.
Referências:
- BERNSTEIN, Jeremy, 1982, Observación de la Ciencia (tradução para o espanhol de Lorenzo Aldrete, 1988), Fondo de Cultura Económica, México.
- LUX, Kenneth (1993), O erro de Adam Smith — De como um filósofo moral inventou a Economia e pôs fim à moralidade, Nobel (tradução), São Paulo. Uma resenha deste livro foi publicada em
Integração II(4):74-6,1996.
- MARTIN, Brian, 1998, Information liberation — Challenging the corruptions of information power, Freedom Press, London (180 p.). Este livro está liberado para download, podendo ser obtido em arquivo pdf, sem despesas, através do URL
http://www.uow.edu.au/arts/sts/bmartin/pubs/98il/ilall.pdf.
- POPPER, K.R., 1956, Acerca da inexistência do método científico, texto lido num encontro dos Fellows of the Center for Advanced Study in the Behavioral Sciences, em Stanford, Califórnia, em Novembro de 1956. Prefácio da edição de 1956 do livro O Realismo e o Objetivo da Ciência, Publicações Dom Quixote (tradução), Lisboa 1987.
- KUHN, T.S., 1962, A Estrutura das Revoluções Científicas, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1975 (tradução). Estou me referindo ao capítulo 3: A ciência normal como resolução de quebra-cabeças, pp. 57-66
- RUMJANEK, Franklin, (2004), Fronteiras da ciência — Ética e desenvolvimento, CiênciaHoje 35(206):22-3.
- MAGUEIJO, João (2003), Mais rápido que a velocidade da luz, Editora Record, Rio de Janeiro, p. 282.
- COHEN, I. BERNARD e Richard S. WESTFALL (1995), Newton, Textos – Antecedentes – Comentários, Contraponto : EDUERJ (tradução, 2002), Rio de Janeiro, p. 397.
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