Método científico e produtividade

framesAlberto Mesquita Filho

 

Editorial - Integração X(38):199-200,2004

 

 

As principais correntes de pensamento relativas ao estudo do método científico, e a atraírem a atenção dos estudiosos no século XX, foram principalmente aquelas propostas por Karl Popper e Thomas Kuhn. Não apenas divergem em suas conclusões mas também, e principalmente, seguem, desde o início, abordagens totalmente diversas, pois focalizam o método científico através de prismas diferentes.

Popper disseca o núcleo do método científico, estabelece uma regra metodológica associada a seu método dedutivo de prova, combate o indutivismo com paixão, a ponto mesmo de ignorar a via indutiva, e propõe a falseabilidade como critério a ser adotado pelos cientistas para o teste de suas teorias. A filosofia de Popper adapta-se ao lema revolução permanente, a ser adotado pelos cientistas sem restrições outras ao livre pensar que não aquelas inerentes ao método científico propriamente dito. Kuhn, por outro lado, aborda essencialmente a periferia do método e constrói suas idéias tomando por base argumentos históricos. Em linhas gerais, traça um perfil da evolução das ciências, estabelecendo, a partir daí, uma espécie de comportamento padrão a ser observado pelos cientistas. Kuhn enxerga a evolução da ciência como constituída pelo que chama períodos de ciência normal, nos quais os cientistas limitar-se-iam a se orientar pelos paradigmas vigentes; e períodos revolucionários, desencadeados pela falácia dos paradigmas até então aceitos como verdadeiros. A filosofia dogmática de Kuhn, ao ser aceita, enfraquece sobremaneira a falseabilidade lógica de Popper. Com efeito, as teorias a sustentarem os paradigmas estão, durante os períodos de ciência normal de Kuhn, superprotegidas quanto à falseabilidade. Qualquer idéia proposta no sentido de falsear um paradigma deveria ser mal vista pela comunidade científica. O cientista, para Popper, deve adotar uma atitude revolucionária permanente, enquanto que, segundo Kuhn, ele deve se acomodar aos dogmas vigentes, sob pena de ser alijado da comunidade científica. O corporativismo é inerente à filosofia de Kuhn. Decorre deste corporativismo a adoção de modismos, a ênfase à pseudo-exatidão, a justificar a falta de clareza, e o autoritarismo do especialista, temas esses excessivamente criticados por Popper.

A filosofia de Kuhn adapta-se à idéia de cientista como um solucionador de quebra-cabeças. Não obstante, seria este um jogo rigidamente controlado por regras a se firmarem numa profunda adesão aos paradigmas vigentes. Nas palavras de Kuhn, a tarefa do cientista consiste em manipular as peças segundo as regras de maneira que seja alcançado o objetivo em vista. Se ele falha, como acontece com a maioria dos cientistas, pelo menos na primeira tentativa de atacar um problema, esse fracasso só revela a sua falta de habilidade. As regras fornecidas pelo paradigma não podem então ser postas em causa, uma vez que sem essas regras começaria por não haver quebra-cabeças para resolver. Ou seja, o que Kuhn propõe é um engessamento do método científico, seja através do bloqueio da intuição (no que diz respeito a idéias novas não condizentes com os paradigmas vigentes), seja através do desestímulo à criatividade (ou ao transcendentalismo). Tanto o dínamo propulsor do método científico (novas idéias) quanto o destino dado aos conhecimentos produzidos (se publicados ou se rejeitados), ficariam sujeitos a um controle rígido, a cargo de uma comunidade a adotar, muitas vezes, uma política acadêmica recheada de preceitos, dogmas e normas travestidas de paradigmas, apesar de utopicamente esta comunidade ter sido concebida dentro de moldes estabelecidos por um ideal platônico; e a se reciclar esporadicamente (períodos revolucionários), tão logo se sinta imersa no terreno pantanoso que semeou. Em contraste a essa atitude ingênua, há que se destacar uma das conclusões de Barry Gower em seu livro sobre método científico: Mas se os paradigmas forem tais que não possa haver boas razões a justificarem sua adoção, a não ser causas sociais e ideológicas, então a ciência natural não será mais do que uma dentre inúmeras maneiras que temos para conversar uns com os outros. [...] ...o método experimental não seria mais do que uma prática característica de um tipo de “discurso” ou “narrativa” destituído de eficácia ou validade. Fora dos diferentes contextos a que se relacionam, as melhores teorias não seriam mais dignas de crédito nem menos arbitrárias do que a superstição irracional. [E, citando Gross e Levitt, conclui:] “A ciência”, de acordo com esse ponto de vista, “não é um corpo de conhecimentos; pelo contrário, ela é uma parábola, uma alegoria, que inscreve um conjunto de normas e códigos sociais e que não obstante, e de maneira sutil, estão a representar uma estrutura mítica a justificar o domínio de uma classe, de uma raça, ou de um gênero [masculino ou feminino] sobre o outro.”

Popper, ao contrário, defende uma atitude crítica sem limitações, deixando claro ser esta a única mola propulsora na produção de conhecimentos. Chega mesmo a se autoproclamar herege, como que a zombar do que pensam seus parceiros filosóficos com respeito a sua atitude crítica. Sua maneira de pensar está bem sintetizada nas seguintes palavras: As teorias científicas distinguem-se dos mitos unicamente por serem criticáveis e por estarem abertas a modificações à luz da crítica. Popper conclui o texto, de onde esse pensamento foi extraído, expondo, com as seguintes palavras, como encara a gloriosa diversão proporcionada pela ciência: Para concluir, acho que só há um caminho para a ciência — ou para a filosofia: encontrar um problema, ver a sua beleza e apaixonarmo-nos por ele; casarmo-nos com ele, até que a morte nos separe — a não ser que obtenhamos uma solução. Mas ainda que encontremos uma solução, poderemos descobrir, para nossa satisfação, a existência de toda uma família de encantadores, se bem que talvez difíceis, problemas-filhos, para cujo bem-estar poderemos trabalhar, com uma finalidade em vista, até ao fim dos nossos dias.

A.M.F.


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