Paternalismo e utilitarismo

framesAlberto Mesquita Filho

 

Editorial - Integração XI(41):103-4,2005

 

 

Tenho observado, há anos, uma atitude bastante comum em meio ao academicismo brasileiro: muitos educadores, voluntária ou involuntariamente, via de regra bem intencionados, postam-se com uma atitude excessivamente paternalista, como se todos os seus semelhantes fossem menores de idade e incapazes de pensar. Isso a meu ver, e pode ser que eu esteja errado, agrava-se tanto mais quanto mais se associa a um instrumentalismo que, em condições especiais, pode ser muito bom para o engenheiro ou outros profissionais voltados à praticidade, mas que, quando mal aplicado, acaba por promover o engessamento das ciências básicas. A ciência necessita de uma atitude revolucionária permanente e a ser adotada por alguns, em contraposição ao conservadorismo adotado por outros. A ciência evolui através de revoluções, e quero crer que sob esse aspecto Thomas Kuhn (1962) acertou, mas isso jamais justificaria o que ele chamou de períodos de ciência normal. Kuhn (1974) pretendeu fixar normas para revoluções, assim como Bill Gates pretende fixar as normas de segurança do nosso computador. No caso do Bill Gates isso pode vir a ser bom, muitos gostam e compram o seu produto (utilitarismo), mas a ciência não pode ficar engessada à espera da falácia dos paradigmas. Uma nova idéia ou uma nova teoria em ciência deveria sempre ser bem-vinda, desde que se justificasse lógica e experimentalmente, e quero crer que essas duas palavras deveriam ser suficientes para diferenciar um cientista sério de um cientista aloprado ou megalomaníaco (crackpot). Em resumo, uma teoria deveria ser avaliada, e não tachada disso ou daquilo através de critérios como os do Baez (1998) e/ou a se apoiarem no conservadorismo (como os do Kuhn). Os períodos de ciência normal duram um número indefinido de gerações, em geral mais de 5 gerações. Ora, e se Einstein, Galileu ou Newton tivessem nascido durante um período desses, e não numa época de crise da física? Será que o ano de nascimento seria o melhor critério a diferenciar um crackpot de um cientista bem intencionado, ainda que com idéias não bem compreendidas à primeira vista? Pois é isso o que Thomas Kuhn propõe e que o academicismo selvagem aceita como algo maravilhoso, haja vista adaptar-se como uma luva a proteger a galinha dos ovos de ouro daqueles que são conservadores não por convicção, mas por conveniência; e todos nós sabemos que a má política existe não apenas em Brasília, mas também nas melhores universidades do mundo.

Pois é isso o que procuro defender em minhas críticas a um excessivo utilitarismo acadêmico. Há quem diga que ajo em defesa própria, haja vista eu ser um teorizador. Em contraponto digo que embora acredite nas minhas teorias, sinto que não estarei mais aqui quando ou se algum dia elas vierem a ser aceitas por um contingente razoável de cientistas. Mas isso não me preocupa, pois teoria é coisa que faço nas horas vagas, assim como também faço poesias e, raramente, até mesmo músicas: por diletantismo, por prazer, por amor à natureza ou pela satisfação em constatar que consigo explicar determinados fenômenos à minha maneira e sem a preocupação de convencer a ninguém, coisa que poucos entendem. Esse é um talento que a natureza me deu e nem sei se em nível razoável, mas o importante é que me faz bem e gostaria de compartilhar com os outros não apenas as minhas teorias, mas também, e principalmente, aquela satisfação pela descoberta do novo; e para que cada um aprenda a ter essa satisfação por si próprio, com idéias próprias. Quanto ao mais, se minhas teorias são boas ou não, isso não me preocupa, não me afeta, e só o futuro dirá, e não vivo em função dessa incerteza. O importante é que quanto mais idéias novas e genuinamente nacionais tivermos —e isso não pode se limitar à tecnologia, mas deve se ater principalmente às ciências básicas— tanto mais estaremos próximos de construirmos uma elite pensante a não ficar a dever nada a país nenhum do mundo. Esse é um problema meramente estatístico. Em ciência, por exemplo, se a cada 20 idéias novas, uma vingar, nossa comunidade acadêmica terá cumprido o seu papel. Mas se, ao contrário, negarmos de antemão essas 20 idéias, unicamente por estarem fora dos padrões já bem estabelecidos, ou seja, do que chamam ciência normal, então a nossa ciência não se desenvolverá e ficaremos à mercê da leitura de revistas padrão A publicadas em outros países e nem sempre adaptadas à realidade nacional. A ciência é universal, mas a tecnologia é local. Tecnologia não se importa, tecnologia se desenvolve e tecnologia apóia-se na ciência básica. Mas se nossa ciência básica provém do resto do mundo, estaremos sempre começando nossos projetos tecnológicos com anos de atraso, e isso é exatamente o que interessa aos países donos do mundo. É nesse sentido que me rebelo a esse utilitarismo massificante que pode justificar a prática tecnológica, mas não justifica a tecnologia num amplo sentido, como um bem a ser conquistado. E é por isso que eu digo que a ciência não pode se apoiar nesse utilitarismo ingênuo e/ou oportunista, na dependência do referencial, que outra coisa não faz senão manter a nossa tecnologia bem aquém daquela observada no país do Thomas Kuhn.

Não sei se fui claro, mas é assim que vejo a nossa realidade, e esta será tanto mais imperfeita quando mais o nosso academicismo se satisfizer ou até mesmo defender esse excêntrico e oportunista utilitarismo científico.

A.M.F.


Referências:
  1. KHUN, Thomas S., 1962, A estrutura das revoluções científicas, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1975 (tradução).
  2. KHUN, Thomas S., 1974, A função do dogma na investigação científica, texto número 2 do livro A crítica da ciência (org.: Jorge Dias de Deus), Zahar Editores, Rio, pp. 53-80.
  3. Baez, John, 1998, The crackpot index — A simple method for rating potentially revolutionary contributions to physics, http://math.ucr.edu/home/baez/crackpot.html.

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