A REVOLUÇÃO QUE ESTÁ A TERMO

framesAlberto Mesquita Filho

Editorial - Integração II(4):4-5,1996

"... E o século XX ou será o século da síntese ou não será nada; ou culminará na adoção de uma filosofia ou de uma idéia diretriz ou então, a exemplo dos anteriores, continuará a trajetória infeliz e irritmada que se vem observando em toda a parte, desde que o mundo perdeu a fé na inteligência.

Alberto Mesquita de Camargo

O período de indefinição, denunciado há 60 anos por Alberto Mesquita de Camargo [1] ¾e interrompido pelo deflaglar da segunda grande guerra mundial¾ retorna hoje ¾perpassada a guerra fria que então se seguiu¾ em proporções ampliadas pelo decorrer dos anos. Esta realidade faz-se evidente quando, num exercício de imaginação, projetamo-nos à condição de hipotéticos observadores de nós mesmos, e... O que vemos? Nada mais, nada menos que a humanidade, postada em ínfima ruela à beira de monumental abismo, a contemplar, por um lado, rochas pétreas impenetráveis; por outro, a magnífica extensão do nada.

Vícios nocivos, testemunhos de um passado historicamente recente ¾que corroeram nossa fé, sublimaram nossa fala e transmutaram amor em ódio¾ estão por aí a desafiar nossa inteligência. Que aconteceu com aquele que poderia ter sido o século da síntese? Onde erramos? Qual foi o mau exemplo legado pelos séculos anteriores? Como despertar a humanidade frente à realidade insana em que vivemos? [2] Como preparar a universidade para que ela possa desempenhar o papel de orientadora da revolução que está a termo? [3]

A partir do Summit de 1988 [4], sistemas políticos condenados à falência ¾e que, não obstante, polarizaram a história de quase todo o século XX,¾ irmanaram-se em suas agonias, como que a suplicar pela procrastinação de seus amargos fins. Flagram-se hoje ¾como consequência desta opção doentia pela distanásia¾ por todos os recantos do mundo ¾e em meio aos estertores que denunciam o fim de mais uma era órgio babilônica¾ resquícios de um irracionalismo a nos aduzirem que o poder permanece em mãos dos seguidores de ideologias fracassadas.

Se não há mais porque se falar, hoje, em esquerda ou direita ¾as duas faces da mesma moeda que, ao destronarem o homem de seu egocentrismo, coroaram o Capital como o senhor todo poderoso do universo¾ podemos, não obstante, tecer comentários sobre seus filhos pródigos: o neoliberalismo e a social democracia ¾ que, de braços dados, estão a zombar de nosso alheamento ou, porque não dizer, nossa ignorância, ingenuidade e/ou oportunismo.

A doutrina liberal defende a coexistência entre um estado de direito, ou seja, com poderes limitados, e um estado mínimo, ou seja, com funções limitadas (Bobbio, [5] 1994, e Lanzoni, [6] 1987). "O Estado é concebido como um mal necessário" e "deve se intrometer o menos possível na esfera de ação dos indivíduos" [7,8]. Some-se, a esses princípios fundamentais, o seguinte corolário: "A concepçao liberal do Estado contrapõe-se às várias formas de paternalismo ¾segundo as quais o Estado deve tomar conta de seus súditos tal como o pai de seus filhos, posto que os súditos são considerados como perenemente menores de idade." [7] É interessante analisarmos esta adenda à luz da opinião de Rousseau [9], a denunciar uma incompatibilidade entre liberalismo e democracia representativa: "O povo inglês crê ser livre, mas se equivoca redondamente; só o é durante a eleição dos membros do parlamento; tão logo são esses eleitos, ele volta a ser escravo, não é mais nada." Como numa resposta ao filósofo, na página 44 de sua obra, Bobbio (op. cit.) ensaia esta compatibilização: "O indivíduo que se dirige às urnas para expressar o próprio voto deve gozar das liberdades de opinião, de imprensa, de reunião, de associação, de todas as liberdades que constituem a essência do Estado liberal, e que enquanto tais passam por pressupostos necessários para que a participação seja real e não fictícia."

O socialismo, outrora antítese [10] do liberalismo, abandonou, recentemente, sua marca registrada ¾a luta pró "substituição da propriedade privada pela propriedade socializada'" [11]¾ convertendo-se num liberalismo às avessas. A distinção entre liberalismo democrático e social democracia é hoje muito mais uma questão política ¾para não dizermos retórica¾ do que econômica: votação (representantes) versus delegação de poderes (delegados sujeitos a revogação); igualdade real (utopia) versus igualdade como ideal último (utopismo). As quimeras prenunciadas para a sociedade comunista ¾estágio último do socialismo "científico" que Marx recusou-se a definir [12] ¾ confundem-se hoje com os ideais já apontados da doutrina liberal: ausência do estado, liberdade total e abundância de bens de consumo.

A bem da verdade, liberalismo e socialismo, incluindo-se neste último a pretensa "filosofia" da práxis, são doutrinas virgens, posto que jamais saíram do papel. E não há como contestar qualquer visão positivista que por ventura venha a ignorá-las, tendo em vista que jamais foram testadas ¾ a não ser denunciando a miopia científica de tais visionários. O que se nos aparenta como verdade é que na prática as teorias testadas foram outras, e isto se deveu a falhas das teorias originais, que desprezaram a identidade entre observadores e observados, bem como a distinção sinérgica entre antagônicos complementares como conteúdo e continente, indivíduo e sociedade [13].

"A trajetória infeliz e irritmada que se vem observando em toda a parte, desde que o mundo perdeu a fé na inteligência", contrasta com os discursos recheados de ufanismos igualitários, liberais e de amor ao próximo, a locupletarem os espaços informacionais. Em nome de um neo-liberalismo-social-democrata, o que vemos hoje, por exemplo, no Brasil, é um paternalismo consensualista e corporativista de Estado a nos aprisionar aos donos de uma "verdade" consensual, absoluta, insofismável e incontestável; uma ditadura do consenso que, em nome de um pseudo protecionismo aos medíocres ¾mais correto seria dizer protecionismo à mediocridade [14]¾ tem como única finalidade favorecer uns poucos bacharéis que conseguiram se imiscuir na reestruturação do Estado. Mas... como explicar tal transformação?

Os regimes ditatoriais caracterizam-se por coibirem ao máximo a proliferação de seus críticos o que, via de regra, se consegue pela "mediocrização deliberada" [15] da sociedade aliada à elitização de uma minoria protegida pelo sistema. Métodos diferentes ¾ conforme se trate de uma ditadura de tiranos, ou de delegados do proletariado ou ainda de uma ditadura do consenso ¾ prestam-se a um mesmo fim: a manutenção do "status quo". Via de regra consegue-se propiciar uma ilusória felicidade ¾para um dado contingente populacional¾ tanto maior quanto menos subdesenvolvida for a região afetada. Obviamente, esta prática é mascarada pela mídia, e a ação desta é protegida pelos gestores daquela; e assim como menos por menos dá mais, a negação da negação nos leva a assimilar manobras ditatoriais como recursos consensualmente aceitos como democráticos. Exemplificando:

A negação da negação nos leva a enxergar povos, levados à mediocrização deliberada, como bárbaros. Realizada esta transmutação, torna-se fácil justificar a tirania com argumentos de liberais-democratas de peso. Assim é que Mill, pregador de uma doutrina liberal "antipaternalista por excelência" [16], presta-se a fornecer subsídios aos defensores do paternalismo consensualista e corporativista graças a um seu comentário secundário, polêmico, tremendamente contestável e, acima de tudo, de pouco valor para sua teoria: "O despotismo é uma forma legítima de governo quando se está na presença de bárbaros, desde que o fim seja o progresso deles e os meios sejam adequados para sua efetiva obtenção". É interessante observar que mesmo o "despótico" Mill dificilmente obrigaria uma população de bárbaros à utilização de cintos de segurança, pois "o único objetivo pelo qual se pode exercer legitimamente um poder sobre qualquer membro de uma comunidade civil, contra a sua vontade, é o de evitar danos aos outros". [16]

Se, por um lado, o paternalismo "protege" os bárbaros criados pelo sistema, por outro a mídia comprometida presta-se a propagar um falso consensualismo que, subliminarmente, e em terra de bárbaros, acaba se materializando; e o corporativismo, por seu turno, mantém a pseudo elite dos bacharéis no poder.

Exposto o problema, vejamos agora como o "jovem" professor Alberto Mesquita de Camargo concluiu o tópico que deu origem a este editorial:

"Um dia virá em que o mundo, depois de tantos erros e sofismas, há de se ter achado a si mesmo, sabendo construir a sua felicidade relativa, o quanto possível, num templo de sabedoria onde a contextura material do edifício não ultrapassará o ideal embutido na matéria. Nesse dia o mundo será feliz porque ness'hora terá certamente realizado uma grande obra, completando o século da síntese. Que este seja o século XX, é o que corajosamente almejamos."

Sessenta anos após, eis-nos ¾prensados no tempo ¾ frente ao ideal a ser perseguido pela elite universitária brasileira: "Ainda é tempo de se fazer alguma coisa para que o século XX não passe para a história como o século da mentira." [17] "É dever da universidade denunciar com veemência este descalabro no sentido de incentivar os legítimos educadores para que despertem para a realidade insana em que vivemos e assumam o papel de agentes efetivos da revolução que está a termo." [18]

A.M.F


Referências:
  1. Na década de 30 (século XX) o professor Alberto Mesquita de Camargo, num de seus discursos, como paraninfo, intitulado "As virtudes do passado", proferiu, em São Carlos, as palavras acima destacadas.
  2. MESQUITA Fo., A (1995), A Síndrome dos três i's, Integração (I)2:128-32.
  3. Item XVII da Carta de Intenções do Centro de Pesquisa da USJT.
  4. Encontro entre Reagan e Gorbachev, amplamente divulgado pela imprensa da época.
  5. BOBBIO, N., 1994, Liberalismo e Democracia, ed. brasiliense (trad.), S.P., p. 17.
  6.  LANZONI, A., 1987, Iniciação às Ideologias Políticas, Ícone ed., S.P., p. 12.
  7. BOBBIO, 1994, op. cit., p. 21-2.
  8.  LANZONI, 1987, op. cit.: "O poder é mau em si", ou ainda, "o uso do poder é pernicioso; se for preciso exercê-lo, será necessário reduzi-lo tanto quanto possível."
  9. Citado por Bobbio (1994), op. cit., p. 33.
  10. [10] BOBBIO, 1994, op. cit., p. 78.
  11.  LANZONI, op. cit. p. 39.
  12.  KONDER, L. (1992), O Futuro da Filosofia da Práxis, Paz e Terra, S.P. p. 45.
  13. [13] A esse respeito, convém ler o artigo "O Individualismo e o Socialismo", de Alberto MESQUITA DE CAMARGO (1936).
  14. MESQUITA Fo. (1995), op. cit.
  15. Termo usado por Mário SCHEMBERG, citado em MESQUITA Fo. (1955), op.  cit.
  16. MILL, J. S. (1858), On Liberty, citado por Bobbio (1994), op. cit., p. 66-7.
  17. MESQUITA Fo. (1991), Chamberland e o Paraíso Perdido, Ed. Ateniense Ltda, São Paulo, nota de orelha.
  18. MESQUITA Fo. (1995), op. cit., p. 132.

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