Sobre as origens da física moderna

framesAlberto Mesquita Filho

 

Editorial - Integração VII(26):163-4,2001

...Já a teoria da física quântica é muito complicada, e nem os físicos têm certeza do que ela significa. E tenho de confessar que, quanto mais eu estudo teoria quântica, menos eu a entendo.
Alan Sokal

Caro Bruno:

Dentre as inúmeras controvérsias que venho apontando e que caracterizam nosso diálogo gostaria, nesta mensagem, de focalizar a atenção em algo que julgo fundamental. Aliás, você há de ter notado que venho mudando o enfoque de meu discurso. Não que assuma, do ponto de vista epistemológico, ter cometido algum erro; mas percebo que você está um passo à frente da maioria daqueles com quem discuti o assunto anteriormente. Quero, então, expressar a idéia da existência de uma autêntica física clássica, ao lado de outra, também chamada clássica e newtoniana, mas a negar o que de mais importante Newton nos legou.

Essa física, supostamente newtoniana, foi aquela que efetivamente consagrou-se como tal na última década do século XIX; e era essa a física a não explicar o espectro de radiação do corpo negro ou a experiência de Michelson-Morley. Digno de nota é que os físicos da época não conheciam elétrons, a não ser no terreno de idéias mal levadas em consideração —como as de Faraday— se bem que apoiadas na experimentação. Pois foi esta física que, de maneira indevida, aceitou que qualquer coisa que pudesse manifestar-se por efeitos elétricos ou magnéticos deveria reduzir-se aos elementos básicos da teoria de Maxwell. E, não obstante, está patente na monumental obra de Maxwell, e em vários de seus capítulos, que toda a matemática apresentada adotou, como pressuposta, a existência dos fluidos elétricos. A única concessão que Maxwell fez a respeito foi dar a entender que, para ele, tanto fazia conceber a existência de um único fluido elétrico como apelar para as teorias de dois fluidos elétricos, como a demonstrar uma certa indiferença para com as briguinhas que pipocavam entre seus contemporâneos e que Maxwell demonstrou, habilmente, estarem desprovidas de sentido para a finalidade almejada.

As idéias de Maxwell em hipótese alguma garantem a existência de partículas elementares, mesmo porque a teoria foi construída independentemente dessa noção e, quero crer, da maneira como aconteceu, pois não seria possível prevê-las pela teoria em si. Por outro lado, a existência de partículas elementares não falsearia a teoria de Maxwell e tampouco modificaria seu núcleo, a menos que se tentasse reconstruí-la de maneira que comportasse essa existência. O que não se pode, a meu ver, é assumir gratuitamente que, pela teoria de Maxwell, essas partículas gerassem um campo idêntico aos objetos macroscópicos utilizados por Maxwell em suas hipóteses básicas, quais sejam, carga elétrica e corrente elétrica. E é exatamente nesse ponto que começam nossas divergências.

Você diz que o campo de um elétron ou, em suas palavras, o quantum do campo eletrônico, teria simetria esférica, a exemplo do campo de uma carga elétrica. E eu digo que esse campo não pode ser coulombiano, apoiando-me na experimentação como deveria ser interpretada por um físico clássico de fato, se bem que não por outro físico clássico a já assumir como verdadeiro aquilo que, para mim, seria um absurdo. Mas, então, você afirma que todas as experiências eletromagnéticas efetuadas retratam o comportamento coulombiano que, pelo que você deu a entender, seria um campo a variar com o inverso do quadrado da distância. Mas isso, por si só, não é um campo coulombiano. O campo magnético de um elemento de corrente (lei de Biot-Savart) varia com o inverso do quadrado da distância e não é um campo coulombiano: nem é elétrico, nem é de simetria esférica. O campo de efeitos elétricos da minha teoria, sob o ponto de vista matemático, é muito parecido com o campo da lei de Biot-Savart; ele tem um co-seno no lugar do seno ou então o que chamo produto vetorial interno no lugar do produto vetorial externo ou tradicional; e, também, não tem simetria esférica, mas também varia com o inverso do quadrado da distância; para uma direção constante, ele cai exatamente da maneira observada na lei de Coulomb.

Por que então eu afirmaria que o campo de um elétron não pode ser coulombiano na visão de um físico clássico de fato? Porque para esse físico clássico todos os fenômenos observados deveriam ser explicados por meio dos postulados básicos de sua física clássica; e quando falo em postulados não estou me referindo aos princípios da mecânica de Newton, mas aos axiomas ou pressupostos da física newtoniana e que, de maneira sucinta, caracterizariam o que afirmei como sendo os pilares básicos dessa física: espaço, tempo, matéria, movimento da matéria e informação do movimento da matéria. E digo mais: por esses axiomas não há como confundir espaço com tempo nem matéria com movimento da matéria. Ou seja, se nós quisermos manter os axiomas da física newtoniana intactos, não poderemos, em hipótese alguma, apoiados agora na experimentação, interpretarmos as experiências por meio da aceitação a priori da existência de um elétron responsável por algo que possa ser caracterizado como o campo de uma carga elétrica coulombiana e, como tal, de simetria esférica.

Em outras palavras: qualquer experiência a "garantir", sem dar margem a dúvidas, que o campo elétrico gerado por um elétron é coulombiano, estaria a meu ver falseando, de maneira irrefutável, a física newtoniana. Mas... essa experiência já foi feita? Na sua opinião, parece que sim. Na minha opinião, parece que não; se tirarmos a média de nossas opiniões, diria que a problemática ainda não foi resolvida, pois a mim parece que as coisas ainda não foram elucidadas da maneira como enfatizei, qual seja: sem dar margem a dúvidas. É claro que essa média não é para ser levada a sério, pois o falseamento não é algo a se sujeitar a opiniões pessoais. Sob esse aspecto diria que estou fazendo um inocente jogo de palavras.

Vamos então aceitar, ainda que por hipótese, que o que eu digo não seja assim tão sem fundamento; e que até o momento nós estivéssemos —raciocinando como alguém a viver no final do século XIX— a contemplar uma física clássica ainda não falseada. Nessas condições, Lorentz jamais poderia supor gratuitamente que o campo de um elétron seria coulombiano, nem mesmo após a experiência de Thompson (1897), a supostamente medir a relação e/m; e nem mesmo após a experiência de Millikan, efetuada bem mais tarde. O máximo que se poderia dizer, após a experiência de Thompson ter sido efetuada, seria que o elétron está sujeito a uma força que poderia ser do tipo coulombiano, mas que também poderia não ser. Optou-se, então, pela primeira afirmativa e, com isso, construiu-se uma nova física que se assumiu como sendo a própria física clássica. E essa é a verdadeira origem do que chamei em outra mensagem de "física clássica na visão de um físico moderno dos dias atuais", ou seja, aquela que não consegue explicar grande número dos fenômenos que ocorrem na natureza; ou seja, a física clássica foi falseada por um decreto e, salvo maior juízo, creio que poderíamos chamá-lo de Decreto de Lorentz. Esse decreto acabou sendo referendado como tal por todos os físicos do século XX, até mesmo por aqueles que jamais se satisfizeram com a física do século XX e que, na minha modesta opinião, constituem a imensa maioria dos físicos que conheci, seja pessoalmente, seja por meio das leituras que fiz a respeito desses descontentamentos manifestos. Eles não querem admitir que estão errados, mas se expressam com frequência por meio dessa peculiar idiossincrasia.

Assumindo-se esse decreto como irrevogável, irretratável e irrecorrível (olha aí a origem do partido único, que chamei em outra mensagem de Partidão da física moderna, a existir mesmo antes de Thomas Kuhn ter nascido), não existe mais física newtoniana, ou seja, a física newtoniana foi abolida da face da Terra por decreto. O que sobrou da mesma convencionou-se continuar chamando de física clássica e, por extensão, aquela que, por não explicar grande parte de fenômenos que ocorrem na natureza, precisaria sujeitar-se a algumas modificações em seus pilares básicos. E, daí, surgiu a física moderna com a relatividade, de um lado, e a física quântica, de outro. E daí surgiu aquela história de assumir que, em casos limites, a física moderna confunde-se com a física clássica. Sim, é verdade, mas confunde-se tão somente com a física clássica que aceita uma natureza fluido-coulombiana para as partículas elementares, ou seja, aquela que por não ter dado certo precisou de adaptações que a despersonalizaram, a menos de uma condição limite.

Quando digo então que a física quântica apóia-se na noção de fluidos elétricos, entenda-se: a física quântica tornou-se necessária porque a física que tentou expandir para o microcosmo as idéias do modelo dos fluidos elétricos de Maxwell —e que funcionava muito bem para o macrocosmo— não conseguiu explicar alguns fenômenos importantes encontrados na natureza e relacionados ao comportamento das partículas do microcosmo. Em minha maneira resumida de focar o problema, via de regra devida ao fato de não me darem chance de expressar o que efetivamente penso, fica aquela impressão, que não pretendi dar, de que os físicos quânticos estariam fluidificando as partículas. Isto se confunde ainda mais quando interpretado sob o ponto de vista da dualidade corpúsculo-onda e/ou do chamado colapso ou descolapso da função de onda. Mas essa é uma outra fluidificação que tem a sua lógica própria, a apoiar-se nos conceitos de onda, nuvem ou mesmo densidade probabilística. Esse é um outro problema que raramente chega a me interessar, a não ser quando tento entender como foi que uma coisa que evoluiu a partir de um erro deu origem àquela matemática que dá certo sem que se saiba onde, quando e nem porquê.

A.M.F.


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