Sobre a unificação em ciência
Alberto Mesquita Filho
Editorial - Integração X(39):303-4,2004
Unificar, dizem os dicionários, significa
reunir em um todo ou em um só corpo; fazer convergir para um só fim
[1] ou em um todo coerente [2].
Reunir em um todo, mesmo havendo uma
finalidade, caracteriza muitas vezes o que poderíamos chamar uma soma. Uma enciclopédia, por exemplo, abrange um todo sem necessariamente contemplar a unificação. O princípio unificante pode influenciar o enciclopedista na descrição das partes, mas não privilegia o todo, pois a finalidade primordial, neste caso, é congregar, no sentido aditivo do termo, o maior número possível de conhecimentos sistematizados.
A coerência também é importante, pois implica na harmonia entre os objetos que se pretende reunir e/ou entre estes e o fim a que o congraçamento se destina. Uma reunião harmônica de dois ou mais objetos, proposta em obediência a um fim específico, já é mais do que uma soma. O bom livro didático tem,
geralmente, essa coerência, pois os fatos são apresentados de maneira harmônica e numa sequência a evoluir do simples para o complexo. Quero crer, não obstante, que ainda estamos a meio caminho de exemplificar a unificação. O livro didático é escrito muito mais com a finalidade de obedecer a um currículo —a apoiar-se em normas legais e a pautarem-se, muitas vezes, por regras aditivas— do que com a finalidade de seguir um roteiro a apoiar-se num princípio unificante.
Um texto bem escrito, seja este um romance, um poema ou outra obra literária qualquer, é, acima de tudo, um todo harmônico, e tanto mais será quanto mais soar de maneira agradável, produzindo uma sensação de prazer em quem o escreve e, por conseguinte, em todos os leitores que entrarem em sintonia com o autor. Agora sim, estamos com o tempero que faltava e não é difícil perceber que o agente desta sensação de prazer está, de alguma maneira, relacionado a uma
convergência inerente aos objetos que se pretende reunir e que, para o caso exemplificado, seriam as palavras e os conceitos ou idéias a eles associados. Não é à-toa que os estudiosos de literatura dizem que em algum momento de seu trabalho o romancista,
em geral, perde as rédeas de comando, tudo se passando, a partir de então, como se os personagens ganhassem vida própria. Quem dita as normas agora não é mais o autor, mas a realidade que ele está pretendendo retratar; e tanto mais assim será quanto mais o autor procurar transmitir sua experiência de vida, ainda que seja através de uma obra de ficção.
O cientista, conquanto apóie-se em normas diversas e, sob muitos aspectos, bem mais rígidas, passa, com grande freqüência, por processos similares àquele acima descrito para o literato. Os personagens confundem-se com os objetos de estudo pertencentes à natureza, e estes seguem os desígnios da natureza, também como se tivessem vida própria, num
lato sensu. O realismo impõe-se à ciência e o papel do cientista não vai muito além daquele observado em um mero perscrutador da realidade factual. Em meio a essa investigação da natureza, o cientista se desdobra, ora decompondo um todo em partes, ora procurando reunir observações isoladas num todo lógico, coerente, convergente e de fácil entendimento. Com grande frequência a
convergência decorre de uma atração entre opostos e chamaremos a estes por antagônicos complementares, ou seja, antagônicos que se completam, a exemplo da chave e da fechadura ou das peças de um quebra-cabeça.
A unificação é de importância fundamental para o progresso e para a evolução das ciências. Como teria dito POINCARÉ
[3], a ciência é construída de fatos, como uma casa é de pedras. Mas uma coleção de fatos não é mais uma ciência do que um monte de pedras é uma casa. Os fatos são coletados através de observações controladas e/ou da experimentação, mas a coerência a ser observada quando do agrupamento de fatos é objeto da teorização, se bem que esta coerência não esteja desvinculada da experimentação.
Com a finalidade de enfatizar o papel da unificação em teorização vale a pena expormos aqui o significado de teoria:
teoria é um conjunto de hipóteses coerentemente interligadas, tendo por finalidade explicar, elucidar, interpretar ou unificar um dado domínio do conhecimento
[4]. Por outro lado, e com respeito à experimentação, poderia citar duas dentre as máximas de POPPER
[5] (1959): 1) Não existem observações puras: elas estão impregnadas pelas teorias e são orientadas pelos problemas e acompanhadas pelas teorias. 2)
O experimentador não está principalmente empenhado em fazer observações exatas; seu trabalho é, também, em grande parte, de natureza teórica. A teoria domina o trabalho experimental, desde o seu planejamento inicial até os toques finais, no laboratório. Em outras palavras, experimentação e teorização surgem, em ciência, como etapas antagônicas mas, acima de tudo, interligadas, interdependentes, convergentes e vinculadas, graças à coerência inerente ao método científico
[6,7]. Constituem-se pois num importante exemplo de dupla de antagônicos complementares e a demonstrar que a ciência, além de ser inerentemente unificadora, apóia-se em um método também dotado dessa característica.
A.M.F.
Referências:
- FERREIRA, A. B. H., 1986, Novo dicionário da língua portuguesa, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, p. 1738.
- Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, Versão 1, dezembro de 2001, Editora Objetiva, Instituto Antonio Houaiss.
- POINCARÉ, Henri, 1905, Science and Hypothesis, Walter Scott Publishing, London, Chapter 9:
Hypotheses in Physics. Este livro pode ser lido on line, em inglês e em páginas htm, no site da Brock University (Canadá), em
http://spartan.ac.brocku.ca/~lward/Poincare/Poincare_1905_toc.html; ou então em francês, em
http://abu.cnam.fr/cgi-bin/donner_html?scihyp2.
- MESQUITA F°., A., 1996, Teoria sobre o método científico, Integração II(7):255-62.
- POPPER, K.R., 1959: A Lógica da Pesquisa Científica, Editora Cultrix, São Paulo, 1975 (tradução).
- A maneira como interpreto o método científico pode ser encontrada de maneira resumida em
Teoria sobre o método científico, op.cit..
- MESQUITA F°., A., 2000, Ensaios Sobre Filosofia da Ciência (em particular o capítulo 3,
A Práxis Científica).
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