"...acho que só há um caminho para a ciência — ou para a filosofia: encontrar
um problema, ver a sua beleza e apaixonarmo-nos por ele; casarmo-nos com
ele, até que a morte nos separe — a não ser que obtenhamos uma solução.
Mas ainda que encontremos uma solução, poderemos descobrir, para nossa
satisfação, a existência de toda uma família de encantadores, se bem que talvez
difíceis, problemas-filhos, para cujo bem-estar poderemos trabalhar, com uma
finalidade em vista, até ao fim dos nossos dias.
3.1 Da observação à teorização A práxis científica compreende o conjunto das atividades desempenhadas pelos cientistas tendo por finalidade a produção de novos conhecimentos científicos. A observação desempenha um papel relevante neste processo, havendo mesmo quem afirme que a ciência começa pela observação. Cajal, por exemplo, afirma que "as principais fontes de conhecimento seriam a observação, a experimentação e o raciocínio indutivo e dedutivo" (1). A observação é essencial mas por si só, e desacompanhada de outros fatores, tão ou mais essenciais, seria incapaz de desencadear o processo de produção de conhecimentos. Vamos então analisá-la segundo os seguintes aspectos: 1) observação controlada; 2) observação indireta, ou secundária, ou associada a consulta de acervo (pesquisa bibliográfica); 3) observação pura, primária e/ou fortúita; 4) observação inesperada, a constatar inconsistências. 3.1.1 Observação controlada: A observação controlada nada mais é do que a experimentação ou experiência (2), pressupondo a montagem de um "cenário" construído a partir de um processo analítico destinado à verificação de determinada(s) hipótese(s). Não havendo hipótese, não há o que ser testado; e se a hipótese existir, o processo já está a termo, não se podendo afirmar que tenha "começado" pela experimentação. Eventualmente, durante um procedimento experimental poderão surgir observações não programadas e do tipo das chamadas observações puras ou então das observações inesperadas (ver sub-ítens respectivos a seguir). 3.1.2 Observação associada a consulta de acervo: A pesquisa bibliográfica é útil tanto como fonte de hipóteses, a serem testadas pela experimentação, quanto como fonte de relatos experimentais a fomentarem a teorização (dedução de novas hipóteses). No primeiro caso, e como comentado no item anterior, o processo já está a termo e no segundo caso o cientista poderá estar frente a uma nova temática, e o processo não difere dos que serão comentados nos dois sub-ítens a seguir. 3.1.3 Observação pura: Segundo Popper não existem observações puras: elas estão impregnadas pelas teorias e são orientadas pelos problemas e acompanhadas pelas teorias. (3) Parece-me estar havendo aqui um rigorismo desnecessário na interpretação do termo, talvez a reforçar uma retórica. Vou utilizar o conceito observação pura como equivalente à direta, ou primária, e não produzida, com o que as distinguimos das discutidas nos sub-ítens anteriores. A observação pura, primária e/ou fortuita pode desencadear processos a culminarem com "insights". E, como vimos no capítulo 2, ela é parte de um processo mais geral a que damos o nome de intuição. O fenômeno em consideração tanto pode estar ocorrendo na natureza bruta quanto na experimentação. Às vezes a intuição desencadeia-se pela leitura (pesquisa bibliográfica ou observação secundária) ou, até mesmo, através da imaginação, ao rememorarmos dados já assimilados e/ou acontecidos no passado. Mais do que uma simples observação, o processo intuitivo inicia-se pelo estranhamento, ou seja, pela percepção de alguma coisa diferente e que jamais tínhamos notado. Esta percepção, em si, não retrata o "insight", ou o estalo ou a constatação efetiva de que um fenômeno novo e de certa forma surpreendente chegou a ser "observado". Entre esta percepção, ou estranheza, e o "insight", podem se passar segundos, horas, dias ou mesmo anos. O processo intermediário pode se dar todo ele em nível inconsciente e irracional. Quando duradouro, certamente tomamos consciência do fato, ainda que não tenhamos a resposta e sequer saibamos a causa exata do estranhamento. Neste caso, consciente e subconsciente entram em comunicação mesmo antes do "insight". Quando dura segundos ou minutos é provável que passe do subconsciente para o consciente já sob a forma de "insight". O "insight" nem sempre representa a última etapa do processo e com frequência não é. Em geral torna-se necessário um procedimento racional para sua conclusão. O que caracteriza o "insight" é aquela certeza de que chegamos ao problema mas não ainda à solução. Em outras palavras, o "insight" seria a certeza de que chegaremos à solução por uma via racional. Neste caso, o que caracteriza o "insight" é a descoberta de uma via de raciocínio a ser seguida para que cheguemos à solução. E é por isso que essa etapa final, após o "insight", tem que se passar no nível consciente. Percebe-se então que o simples "observar" não pode ser responsabilizado pela produção de novos conhecimentos: a observação deve estar associada a uma série de fatores outros e a levar em conta uma série de observações e raciocínios outros efetuados no passado. Seria então mais correto dizer que a produção de novos conhecimentos científicos começa não pela observação mas pela intuição (intuitivismo) (4). 3.1.4 Observações inesperadas: Ainda que possamos dizer que as observações inesperadas constituam um caso especial de observação pura, vale a pena estudá-las separadamente pois os procedimentos que se seguem podem ser bastante diferentes. Neste caso o caráter da estranheza é diferente daquele observado no item anterior, pois trata-se de algo novo captado diretamente pelo consciente, como que a falsear um procedimento esperado. De posse de uma constatação como essas, nada impede que a estranheza aloque-se no inconsciente vindo a gerar "a posteriori" um "insight" em nada diferente do descrito no subitem anterior; não obstante o mais comum nestes casos seria o cientista procurar por novas saídas seguindo um procedimento racional (dedução de novas hipóteses). Na procura por novas hipóteses, e para explicar estes fatos anômalos, não é raro o cientista deparar-se com idéias a confrontarem os paradigmas aceitos pela comunidade científica. Por vezes, e procurando não se situar na contra-mão da ciência, chega a hipóteses à primeira vista absurdas e nem sempre factíveis de experimentação direta e/ou imediata. Não raramente, em condições como estas, o bom cientista lança mão da lógica transcendental [7]. 3.2 A espiral da práxis A práxis científica pode ser representada, de maneira didática e bastante simplificada (figura 1), por um campo central de observação, —onde está situado o objeto de estudo, e que nada mais é senão a natureza,— por quatro
Como vimos no item anterior (3.1), o processo intuitivo conclui-se quando chegamos a formular um problema, visualizando então uma via de raciocínio a ser seguida. Esta via começa pela dedução de hipóteses, que são enunciados particulares correspondentes a um dado fenômeno observado e, portanto, mais geral. Por exemplo, Galileu, ao "visualizar" (intuição) a inércia circular para todos os corpos (caso geral), deduziu a hipótese de que os corpos terrestres (caso particular) tendiam ao repouso graças ao atrito. É característica da dedução a evolução do geral para o particular. Frequentemente esta evolução se dá em função da procura por um mecanismo (no caso, o atrito) a justificar um comportamento particular ou local (no caso, a evolução para o repouso) à primeira vista diverso daquele aceito, "a priori", como geral ou universal (no caso, a inércia). E este "a priori" nem sempre decorre de uma experimentação precedente. Conhecida pelo menos uma hipótese, prossegue-se pela análise, destinada a esmiuçar os procedimentos e os detalhes técnicos necessários para o teste da hipótese. Para o exemplo indicado, a análise deveria selecionar o material apropriado para o teste, os mecanismos destinados a colocarem o corpo em movimento (impulso inicial), as manobras destinadas à redução do atrito, a seleção das variáveis a serem levadas em consideração, os dispositivos a medirem as variáveis escolhidas, a análise dos erros, etc. A complexidade deste procedimento analítico chega a ser enfatizada por Popper com as seguintes palavras: O experimentador não está principalmente empenhado em fazer observações exatas; seu trabalho é, também, em grande parte, de natureza teórica. A teoria domina o trabalho experimental, desde o seu planejamento inicial até os toques finais, no laboratório. (3) Nota-se, pelo exposto, o caráter da via analítica: não só no sentido exposto, a esmiuçar detalhes técnicos mas, também, e à semelhança do observado na via anterior (dedutiva), parte-se do geral (todos os corpos terrestres, quaisquer que sejam os mecanismos destinados a reduzirem o atrito) para o particular (os corpos escolhidos para a experimentação, nas condições restritas pela técnica adotada). Concluída a experiência, tem início o processo inverso. E agora, através das relações constatadas, iremos enunciar as leis ou, então, constatar o inesperado (a menos que a experiência tenha sido conduzida na expectativa de falsear a hipótese). Para o exemplo em discussão, esta fase seria também a ideal para a extrapolação dos valores encontrados para a hipotética condição ideal correspondente a uma redução total do atrito. Nesta etapa utilizamos o raciocínio indutivo: verificadas as características inerciais nos objetos testados (caso particular), teremos corroborado a hipótese (caso mais geral), podendo aceitá-la como lei (particular pois refere-se ao comportamento dos corpos terrestres ao serem livrados do atrito). Na etapa seguinte podemos efetuar a síntese desta lei com aquela observada para os corpos celestes, chegando-se à lei universal da inércia. O conhecimento assim adquirido acumula-se no campo das concretizações C, a assumir o papel de fonte de observações secundárias, tanto mais fidedignas quanto mais as observações forem corroboradas por procedimentos outros, no decorrer do tempo. É interessante observar que as duplas indução-dedução e análise-síntese estão constituídas por elementos dotados de propriedades antagônicas e complementares. Em cada dupla, um dos elementos representa uma via de raciocínio a ir do geral para o particular e o outro o oposto. Por outro lado, as duplas indução-dedução e análise-síntese constituem em conjunto um par de elementos antagônicos e complementares. A primeira dupla representa um par de operações mentais que, em determinadas etapas, exige um certo grau de abstração; e a segunda representa um par de operações mentais que exige a permanência no mundo real. (5) 3.3 O método científico A porção periférica do esquema mostrado na figura 1, com quatro campos e uma via de raciocínio, com quatro etapas, representa de maneira simplificada, o que muitos livros de metodologia científica consideram como método científico. A intuição, ainda que essencial para a práxis científica, não costuma ser incluída no método, a considerar apenas os procedimentos racionais. Conquanto esteja já se transformando em coisa do passado, alguns livros ainda adotam o argumento indutivista, a omitir a dedução de hipóteses. O esquema apresentado não se adapta ao argumento indutivista, a menos que excluamos alguns de seus componentes. Críticas ao indutivismo podem ser encontradas na maioria dos livros de metodologia científica e, em particular, nos livros de Chalmers (6) e de Popper (3). O método em si é mais complexo e engloba não apenas a dedução de hipóteses mas também a produção de teorias com múltiplas hipóteses. As teorias nem sempre são testadas por suas hipóteses mas por suas previsões. Nestes casos o teorizador adota, com frequência, artifícios outros, e não pertencentes ao "plano da práxis". Por vezes estes artifícios têm como finalidade fortalecer argumentos a respaldarem uma ou outra das hipóteses ainda não testadas; por outras têm por finalidade a dedução do "entrelaçamento entre as hipóteses" a dar corpo à teoria; ou mesmo, à sondagem de possíveis "variáveis escondidas" a comportarem a existência de hipóteses ainda não visualizadas. Estes procedimentos, em geral, podem ser sistematizados e, pelo fato de levarem à dedução de teorias que fazem previsões, ou seja, que permitem que "se determinem os conceitos que se relacionam aos objetos independentemente da experiência, e anteriormente a ela", podemos dizer que relacionam-se à chamada lógica transcendental de Kant (7). 3.4. O macrométodo científico Podemos ainda conceituar o método científico de uma maneira mais ampla o qual, para evitar confusões, costumo chamar por macrométodo científico
(8). Suponhamos que um cientista tenha publicado seus resultados, ou seja, tenha completado uma etapa da sua existência como tal.
3.5 O método científico e as correntes de pensamento As principais correntes de pensamento, relativas ao estudo do método científico, e a atraírem a atenção dos cientistas no século XX foram principalmente aquelas propostas por Karl Popper (3) e Thomas Kuhn (9). Não apenas divergem em suas conclusões, mas também, e principalmente, seguem, desde o início, abordagens totalmente diversas, focalizando o método científico através de prismas diversos. Popper disseca o método científico propriamente dito, estabelece uma regra metodológica associada a seu método dedutivo de prova, combate o indutivismo com paixão, a ponto mesmo de ignorar a via indutiva acima exposta (item 3.2), e propõe a falseabilidade como critério a ser adotado pelos cientistas para o teste de suas teorias (a falseabilidade será comentada no próximo capítulo desta série). Sua filosofia, quando pensada em termos de macrométodo científico, adapta-se ao lema revolução permanente, a ser adotado pelos cientistas, sem restrições outras ao livre pensar que não aquelas inerentes ao método científico propriamente dito. Kuhn aborda essencialmente o macrométodo científico e constrói as suas idéias tomando por base argumentos históricos. Em linhas gerais, ele traça um perfil da evolução das ciências, estabelecendo a partir daí uma espécie de comportamento padrão a ser observado pelos cientistas. Kuhn enxerga a evolução da ciência como constituída pelo que chama "períodos de ciência normal", nos quais os cientistas limitar-se-iam a se orientar pelos paradigmas vigentes; e "períodos revolucionários", desencadeados pela falácia dos paradigmas até então aceitos como verdadeiros. A filosofia dogmática de Kuhn, ao ser aceita, enfraquece sobremaneira a falseabilidade lógica de Popper. Com efeito, as teorias a sustentarem os paradigmas estão, durante os períodos de ciência normal, superprotegidas quanto a falseabilidade. Qualquer idéia proposta no sentido de falsear um paradigma deveria ser mal vista pela comunidade científica. O cientista, para Popper, deve adotar uma atitude revolucionária permanente, enquanto que, segundo Kuhn, ele deve se acomodar aos dogmas vigentes, sob pena de ser alijado da comunidade científica. O corporativismo é inerente à filosofia de Kuhn. Decorre deste corporativismo a adoção de "modismos", a ênfase à pseudo-exatidão, a justificar a "falta de clareza", e o "autoritarismo do especialista", temas estes excessivamente criticados por Popper (10).
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