O Método Científico
Alberto Mesquita Filho
Ó 2006 - Reprodução Proibida
para fins comerciais Página 1 de 3
1
Sobre a unificação em ciência - p.1
2 Sobre o antagonismo
experimentação-teorização
3 A espiral da práxis
4 Propriedades inerentes ao
método científico - p.2
4.1 Sobre a essencialidade
do método
4.2 Sobre a unicidade do
método
4.3 Sobre a completude do
método
4.4 Sobre a transcendência
do método
4.5 Sobre a abrangência do
método
5 A ciência
como um bem social - p.3
5.1 Sobre o método e a
produtividade
5.2 Sobre o amadorismo em
ciência
5.3 Sobre a neutralidade da
ciência
Notas, Citações e
Referências Bibliográficas
Unificar, dizem os dicionários, significa reunir em um todo ou em
um só corpo; fazer convergir para um só fim
[2] ou em um todo coerente
[3].
Reunir em um todo, mesmo havendo uma finalidade, caracteriza muitas
vezes o que poderíamos chamar uma soma. Uma enciclopédia, por exemplo,
abrange um todo sem necessariamente contemplar a unificação. O princípio
unificante pode influenciar o enciclopedista na descrição das partes,
mas não privilegia o todo, pois a finalidade primordial, neste caso,
é congregar, no sentido aditivo do termo, o maior número possível de
conhecimentos sistematizados.
A coerência também é importante, pois implica na harmonia entre os
objetos que se pretende reunir e/ou entre estes e o fim a que o
congraçamento se destina. Uma reunião harmônica de dois ou mais objetos,
proposta em obediência a um fim específico, já é mais do que uma soma.
O bom livro didático via de regra tem essa coerência, pois os fatos são
apresentados de maneira harmônica e numa seqüência a evoluir do simples
para o complexo. Quero crer, não obstante, que ainda estamos a meio
caminho de exemplificar a unificação. O livro didático é escrito muito
mais com a finalidade de adequar-se a um currículo
¾a apoiar-se em normas legais e a
pautarem-se, muitas vezes, por regras aditivas
¾ do que com a finalidade de seguir um
roteiro a apoiar-se num princípio unificante.
Um texto bem escrito, seja este um romance, um poema ou outra obra
literária qualquer, é, acima de tudo, um todo harmônico, e tanto mais
será quanto mais soar de maneira agradável, produzindo uma sensação
de prazer em quem o escreve e, por conseguinte, em todos os leitores
que entrarem em sintonia com o autor. Agora sim, estamos com o tempero
que faltava e não é difícil perceber que o agente desta sensação de
prazer está, de alguma maneira, relacionado a uma convergência inerente
aos objetos que se pretende reunir e que, para o caso exemplificado,
seriam as palavras e os conceitos ou idéias a eles associados. Não é
à-toa que os estudiosos de literatura dizem que em algum momento de seu
trabalho o romancista, via de regra, perde as rédeas de comando, tudo se
passando, a partir de então, como se os personagens ganhassem vida
própria. Quem dita as normas agora não é mais o autor, mas a realidade
que ele está pretendendo retratar; e tanto mais assim será quanto mais
o autor procurar transmitir sua experiência de vida, ainda que seja
através de uma obra de ficção.
O cientista, conquanto apóie-se em normas diversas e, sob muitos
aspectos, bem mais rígidas, passa, com grande freqüência, por processos
similares àquele acima descrito para o literato. Os personagens
confundem-se com os objetos de estudo pertencentes à natureza, e estes
seguem os desígnios da natureza, também como se tivessem vida própria,
num lato sensu. O realismo impõe-se à ciência e o papel do
cientista não vai muito além daquele observado em um mero perscrutador
da realidade factual. Em meio a essa investigação da natureza, o
cientista se desdobra, ora decompondo um todo em partes, ora procurando
reunir observações isoladas num todo lógico, coerente, convergente e de
fácil entendimento. Como veremos, com grande freqüência a convergência
decorre de uma atração entre opostos e chamaremos a estes por antagônicos
complementares, ou seja, antagônicos que se completam, a exemplo da
chave e da fechadura ou das peças de um quebra-cabeça.
A unificação é de importância fundamental
para o progresso e para a evolução das ciências. Como teria dito
POINCARÉ [4],
a ciência é
construída de fatos, como uma casa é de pedras. Mas uma coleção de fatos
não é mais uma ciência do que um monte de pedras é uma casa. Os
fatos são coletados através de observações controladas e/ou da
experimentação, mas a coerência a ser observada quando do agrupamento de
fatos é objeto da teorização, se bem que esta coerência não esteja
desvinculada da experimentação.
Com a finalidade de enfatizar o papel
da unificação em teorização vale a pena expormos aqui o significado de
teoria: teoria é um conjunto de hipóteses coerentemente interligadas,
tendo por finalidade explicar, elucidar, interpretar ou unificar um dado
domínio do conhecimento [5].
Por outro lado, e com respeito à experimentação, poderia citar
duas dentre as máximas de POPPER (1959)
[6], a serem discutidas no item
seguinte: 1) Não existem observações puras: elas estão impregnadas
pelas teorias e são orientadas pelos problemas e acompanhadas
pelas teorias. 2) O experimentador
não está principalmente empenhado em fazer observações exatas; seu
trabalho é, também, em grande parte, de natureza teórica. A teoria
domina o trabalho experimental, desde o seu planejamento inicial até
os toques finais, no laboratório. Em outras palavras, experimentação
e teorização surgem, em ciência, como etapas antagônicas mas, acima de
tudo, interligadas, interdependentes, convergentes e vinculadas, graças
à coerência inerente ao método científico
[7]
[8]
. Constituem-se pois num importante exemplo de dupla de antagônicos
complementares e a demonstrar que a ciência, além de ser inerentemente
unificadora, apóia-se em um método também dotado dessa característica.
A fim de ilustrar o antagonismo complementar experimentação-teorização
e, ao mesmo tempo, uma das facetas do aspecto unificante da ciência,
vamos apelar para uma citação de BERNSTEIN
[9] e devida a Jacques Barzun:
Fora da mente humana, e à maneira de um impulso livre, produz-se a
criação da ciência. Esta se renova, assim como as gerações, graças a
uma atividade que constitui o melhor jogo do "homo ludens":
a ciência é, no mais estrito e melhor dos sentidos, uma gloriosa
diversão.
Que tipo de jogo seria esse? Pensemos
inicialmente nos objetivos deste suposto jogo, qual seja, a criação da
ciência ou, traduzindo em miúdos, a produção de novos conhecimentos
científicos. Esses conhecimentos não surgem a partir do nada mas em
decorrência de algo existente e, como diz Barzun, situado fora da mente
humana. Uma vez que estamos falando em ciência, podemos interpretar esse
processo de criação como posposto à observação da natureza. Mas sabemos
também ¾e as citações devidas a Popper,
acima expostas, fortalecem essa argumentação¾
que a observação pura e simples não nos leva a nada de novo, a menos que
sejamos os primeiros a constatar a existência de um dado fenômeno ou de
um objeto descoberto, em geral por obra do acaso. Estes imprevistos
acontecem, mas não constituem a regra. As observações que geram frutos
não se restringem ao ato puro e simples de olhar. É preciso muito mais
do que isso. Acoplado ao ato de olhar deve-se ver, perceber,
discernir, pressentir. A visão do todo se sobrepõe à visão das
partes, se não de fato, pelo menos na mente de quem a capta. Tudo isso
caracteriza a intuição, a contemplação pela qual se atinge a verdade
por meio não racional [10],
mas nem por isso de menor valor. Essa intuição surge como se viesse de
fora, à maneira de um impulso livre, haja vista estar associada
ao ato de ver mas, rigorosamente falando, retrata algo produzido no
interior da mente humana, chegando a ser descrita com freqüência como
um insight. Muitas vezes o que se vê não é decorrente de um
olhar, ou da observação de um fato, mas algo imaginário a apoiar-se em
experiências passadas ou, então, decorrente da leitura de algo
vivenciado por terceiros; e estes últimos, apesar de terem observado
todo o processo, a ponto de conseguirem descrevê-lo com perfeição,
não conseguiram ir além do que seus olhos captaram.
A iluminação, decorrente da intuição
¾qual seja, a sensação da
compreensão ou solução de um problema pela súbita captação mental dos
elementos e relações adequados à solução
[11]¾ não surge
por acaso. Necessário se faz que a mente captadora esteja antenada, ou seja,
atenta e, acima de tudo, bem informada. Com efeito, a produção de novos
conhecimentos científicos exige a assimilação prévia de um sem número de
conhecimentos já bem sistematizados. É preciso confiar nessa intuição, pois
essa suposta verdade [12], a se nos
mostrar
por meio não racional, precisa ainda passar por um processo de
racionalização a fim de ganhar em coerência e/ou logicidade, e isso nem sempre
é fácil. Por vezes leva dias, por outras leva anos ou décadas. A paciência e,
acima de tudo, o saber separar o joio do trigo, constituem-se em regras
fundamentais deste jogo, afim de que se consiga distinguir o produto final, se
relacionado à ciência ou se pertencente à seara da ficção.
Conhecido o
objetivo e apresentadas algumas dentre as regras do jogo, vamos tentar evoluir
em direção à resposta ao questionamento acima apresentado: Que tipo de jogo
seria esse? Não é fácil responder a esta pergunta, mas eu ousaria assemelhá-lo
a um jogo de quebra-cabeça bastante sofisticado. Em primeiro lugar, as peças
não estão a nossa disposição, mas espalhadas pela natureza e nos locais os
mais inesperados, a espera de serem encontradas. Nem todas as peças
encontradas pertencem ao jogo que está nos entretendo e não existe quase nada
a nos guiar no processo de encontro das genuínas peças, além da intuição. Cada
peça encontrada, e devidamente identificada como pertencente ao quebra-cabeça,
poderá redundar na produção de novos conhecimentos, como enfatizado nos dois
últimos parágrafos. É importante perceber que o quebra-cabeça pode estar muito
longe de ser completado ou até mesmo nem existir, mas a ciência, mesmo nessa
etapa inicial ou precoce, já está em plena execução. Via de regra, completar a
montagem de cada um desses quebra-cabeças é um trabalho a ser compartilhado
por várias gerações de cientistas. Concluída a
obra, decifrado o enigma, não raramente constata-se que todo o trabalho
empreendido resultou tão somente no encontro de apenas uma das peças de um
quebra-cabeça de nível superior, e que pode até mesmo nem existir, a não ser
como um produto da imaginação. O cientista deve ter em mente que a gloriosa
diversão, referida por Barzun, nem sempre se traduz por bens materiais ou
então por um reconhecimento da comunidade científica. Na maioria das vezes
retrata tão somente o prazer pela prática de uma atividade inebriante,
associada à sensação de euforia devida à conclusão de um empreendimento,
redunde ele em algo útil ou não. Recentemente, questionado em uma lista de
discussão da Internet sobre essas possíveis aspirações gloriosas, na ocasião
relacionadas a uma teoria que apresentei, respondi com as seguintes palavras:
O cientista não é um ser que vive à procura da glória ou do sucesso e a evitar
o fracasso. Sob esse aspecto, vejo o cientista como um ser que abre ou fecha
portas. Se nada de minhas teorias se justificar, gostaria de passar para a
história da ciência como alguém que colaborou para que se fechasse a porta de
um labirinto imenso e que não dá em lugar nenhum. Psicologicamente falando,
isso me basta. O que não posso é ignorar a existência desse labirinto, apenas
para agradar os físicos "modernos", que pretendem que eu o coloque debaixo do
tapete
[13]
[14].
A saída em
campo, ou a procura pelas peças do quebra-cabeça, dá-se principalmente através
da experimentação. A experimentação é uma observação controlada, no sentido em
que via de regra sabe-se aquilo que se pretende encontrar
¾ou pelo menos se tem uma idéia
aproximada¾ e é nesse
sentido que se diz que a teoria domina o trabalho experimental. Mas
este domínio é relativo e meramente orientador, pois ao mesmo tempo em que o
experimentador se firma nas hipóteses de uma teoria, na realidade está com
freqüência submetendo outras hipóteses ¾ou
outras teorias¾ a prova,
muitas vezes chegando a falseá-las ou, até mesmo, derrubá-las. Ao produzir o
cenário, onde irá desencadear-se a experiência, o cientista utiliza-se
principalmente de um par de operações mentais que exigem a sua permanência no
mundo real, quais sejam, a análise e a síntese. É através da análise que ele
reduz uma realidade complexa em elementos mais simples e passíveis de
mensuração. Desta maneira ele consegue estimar e/ou assimilar o todo por um
processo de soma das partes. A experimentação decorre, acima de tudo, de um
procedimento essencialmente analítico. A síntese, não obstante, pode jogar um
papel auxiliar importante nesta fase (e não apenas em uma das etapas que
seguem, como mostrado na Figura 1), pois é através da mesma que o
cientista consegue improvisar os equipamentos destinados à mensuração. Ou
seja, para que possa proceder à análise, dividindo assim a sua experiência em
etapas facilmente mensuráveis e executáveis, ele muitas vezes precisa reunir
os elementos simples num equipamento complexo e que nem sempre existe como
tal.
A teorização
complementa a experimentação, mas também se subjuga à mesma. Com efeito, a
experimentação domina o trabalho de teorização. Este domínio também é sob
certos aspectos relativo, pois não é raro lançarmos mão de argumentos teóricos
para desconfiarmos de uma experiência que tenha sido mal conduzida e que tenha
chegado a resultados inesperados. A bem da verdade, qualquer dúvida com
relação a um resultado experimental impõe a repetição da experimentação e/ou o
confronto com experiências similares. Há que se realçar também que a
experimentação nem sempre se traduz por um resultado único frente a uma
indagação. Com freqüência ela dá origem a um leque de possíveis interpretações
a compactuarem-se, ou não, com esta ou aquela teoria. Respeitados esses
argumentos, é de boa praxe considerar a experimentação bem idealizada e bem
conduzida, como algo dotado de valor absoluto. A experiência terá sido tão
melhor idealizada quanto mais seus resultados se prestarem ou a falsear uma
determinada teoria ou a corroborar uma de suas previsões que não se adéqüem às
teorias concorrentes. Nestas condições pode-se dizer que é a teorização quem
deve adequar-se à experimentação, e não o contrário.
No decurso da
teorização, além da intuição já referida, o cientista utiliza-se
principalmente de um par de operações mentais que, ao contrário da análise e
da síntese, exigem um certo grau de abstração. Refiro-me à dedução e à
indução. É característica da dedução a evolução do geral para o particular, e
o particular encontrado é, via de regra, o que chamamos hipótese. Com a
finalidade de exemplificar podemos supor que Galileu, ao visualizar
(intuição) a inércia de todos os corpos (caso geral), tenha deduzido a
hipótese de que os corpos terrestres (caso particular) tendem ao repouso
graças ao atrito. O teste da hipótese exige sempre a experimentação. Para o
caso citado seria conveniente uma redução progressiva do atrito (através da
lubrificação ou algo do gênero). Uma vez corroborada a hipótese, através da
experimentação, poderemos agora examinar os resultados a fim de verificar até
que ponto a redução do atrito nos permite ou não concluir pela lei da inércia,
como um caso limite. Seria o caso, por exemplo, de construirmos um gráfico com
os dados em mãos, verificando a tendência do gráfico a nos apontar para uma
solução ¾no caso em
apreço uma velocidade constante¾
a medida em que o atrito aproxima-se de zero. Essa etapa pós-experimental
caracteriza a indução, observada no método científico: partimos de um dado
particular (experiência com determinados objetos e em determinadas situações)
e concluímos pela observância de uma lei geral e já intuída numa etapa
inicial.
É importante notar a interdependência
teorização-experimentação e a natureza dialética e/ou complementar desse
antagonismo. O método científico representaria então um roteiro a ser seguido
pelos cientistas produtores de conhecimento científico o que via de regra se
dá através de uma ordem seqüencial, qual seja: dedução Þ análise
Þ
indução Þ síntese (Figura 1). A intuição, haja vista seu caráter
subjetivo, costuma ser deixada de lado quando nos referimos ao método
científico, apesar de estar sempre presente. Sob certos aspectos, isso não
chega a despersonalizar o método em si. Se, não obstante, formos estudar a
evolução das ciências, verificaremos que completada uma etapa de produção de
conhecimentos, entre esta e a que se segue ¾o
quebra-cabeça de nível superior, da analogia apresentada¾
a intuição quase sempre se faz presente. Para que surjam insights,
alguém deverá observar a realidade atual sob um prisma diverso do costumeiro e
é neste sentido que costumo dizer que a intuição faz parte do que poderia ser
chamado por macro-método científico
[15]
[16].
As vias
representadas por flechas na Figura 1 iniciam e terminam em campos
específicos (triangulares na figura), quais sejam: 1) hipótese, 2)
experiência, 3) lei e 4) concretização. Os três primeiros campos já foram
objetos de consideração nos parágrafos acima. Fixemos agora nossa atenção no
campo concretização. A concretização se dá, via de regra, através de um artigo
ou de um livro ou, ainda, de uma palestra apresentada em seminário ou
congresso, e a síntese nada mais é senão o procedimento adotado pelo cientista
na preparação da inserção do novo valor obtido junto ao conjunto de
informações armazenadas pela humanidade, ou ao cabedal de conhecimentos. O
campo concretização pode ser pensado e/ou utilizado como um banco de dados
acumulados e a crescer continuamente, o que justifica o formato em espiral
para o modelo apresentado na Figura 1. É essencial que esta síntese
contemple se há ou não conformidade entre este novo valor, a ser apresentado,
com aqueles conhecimentos já bem assimilados e aceitos como tais pelos
cientistas contemporâneos. Esse crescimento acumulativo chega muitas vezes a
identificar-se com uma soma de conhecimentos mas, como veremos oportunamente,
esta conformidade ¾ou
melhor, a maneira como se dá o inter-relacionamento entre diversos desses
valores acumulados¾ chega
muitas vezes a fomentar a teorização, daí decorrendo a característica
unificadora que, conforme dissemos na introdução deste artigo, é inerente ao
método científico.
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