O Método Científico
Alberto Mesquita Filho
Ó 2006 - Reprodução Proibida
para fins comerciais Página 3 de 3
5. A ciência como um
bem social
A ciência,
de há muito, deixou de ser um empreendimento individual e/ou
interpretado como algo a satisfazer tão somente o diletantismo próprio a
um amadorismo desvinculado da realidade social. Ciência é hoje, acima de
tudo, uma atividade grupal e, via de regra, dotada de objetivos bem
definidos e condizentes com a adequação do homem a sua condição de ser
social. Conseqüentemente, não podemos nos ater ao método científico
pensado tão somente como o caminho trilhado por um cientista em sua
individualidade, mas como algo destinado a um fim social e a propiciar
um revezamento entre os participantes do processo em consideração. Neste
item abordarei um desses aspectos, qual seja, como coadunar ou conciliar
condutas aparentemente contraditórias a privilegiarem ora o
individualismo, ora a socialização da ciência, deixando para os próximos
artigos desta série a tarefa de verificar como se dá o entrelaçamento
entre os caminhos percorridos por cientistas diversos, quando imbuídos
de uma tarefa comum.
As
principais correntes de pensamento, relativas ao estudo do método
científico, a atraírem a atenção dos estudiosos no século XX, foram
principalmente aquelas propostas por Karl POPPER
[34] e Thomas KUHN
[35]. Não apenas divergem em suas
conclusões mas também, e principalmente, seguem, desde o início,
abordagens totalmente diversas, pois focalizam o método científico
através de prismas diferentes. A rigor ambas se reportam mais ao que
poderia ser chamado método das grandes unificações em ciência
[36], mas como o método aqui
apresentado está, sob certos aspectos, implícito neste modelo
generalizante, irei pinçar algumas divergências no posicionamento dos
dois autores e a relacionarem-se ao que já comentei.
Popper
estabelece uma regra metodológica associada a seu método dedutivo de
prova, combate o indutivismo com paixão, a ponto mesmo de ignorar a
via indutiva (isso será justificado em outro artigo desta série), e
propõe a falseabilidade como critério a ser adotado pelos cientistas
para o teste de suas teorias. A filosofia de Popper, quando pensada em
termos do macro-método científico (Figura 3), adapta-se ao lema
revolução permanente, a ser adotado pelos cientistas sem restrições
outras ao livre pensar que não aquelas inerentes ao método científico
propriamente dito. Kuhn aborda essencialmente a periferia do
macro-método e constrói suas idéias tomando por base argumentos
históricos. Em linhas gerais, traça um perfil da evolução das ciências,
estabelecendo, a partir daí, uma espécie de comportamento padrão a ser
observado pelos cientistas. Kuhn enxerga a evolução da ciência como
constituída pelo que chama períodos de ciência normal, nos quais
os cientistas limitar-se-iam a se orientar pelos paradigmas vigentes; e
períodos revolucionários, desencadeados pela falácia dos
paradigmas até então aceitos como verdadeiros. A filosofia dogmática
de Kuhn, ao ser aceita, enfraquece sobremaneira a falseabilidade lógica
de Popper. Com efeito, as teorias a sustentarem os paradigmas estão,
durante os períodos de ciência normal de Kuhn, superprotegidas quanto à
falseabilidade. Qualquer idéia proposta no sentido de falsear um
paradigma deveria ser mal vista pela comunidade científica. O cientista,
para Popper, deve adotar uma atitude revolucionária permanente, enquanto
que, segundo Kuhn, ele deve se acomodar aos dogmas vigentes, sob pena de
ser alijado da comunidade científica. O corporativismo é inerente à
filosofia de Kuhn. Decorre deste corporativismo a adoção de modismos,
a ênfase à pseudo-exatidão, a justificar a falta de clareza, e o
autoritarismo do especialista, temas esses excessivamente
criticados por Popper.
A filosofia de Kuhn adapta-se à idéia de
cientista como um solucionador de quebra-cabeças. Não obstante, seria
este um jogo rigidamente controlado por regras a se firmarem numa
profunda adesão aos paradigmas vigentes. Nas palavras de Kuhn, a
tarefa do cientista consiste em manipular as peças segundo as regras
de maneira que seja alcançado o objetivo em vista. Se ele falha, como
acontece com a maioria dos cientistas, pelo menos na primeira tentativa
de atacar um problema, esse fracasso só revela a sua falta de
habilidade. As regras fornecidas pelo paradigma não podem então ser
postas em causa, uma vez que sem essas regras começaria por não haver
quebra-cabeças para resolver
[37].
Ou seja, o que Kuhn propõe é um engessamento do método
científico, seja através do bloqueio da intuição (no que diz respeito a
idéias novas não condizentes com os paradigmas vigentes), seja através
do desestímulo à criatividade (ou ao transcendentalismo). Tanto o dínamo
propulsor do método científico (novas idéias) quanto o destino
dado aos conhecimentos produzidos (se publicados ou se rejeitados),
ficariam sujeitos a um controle rígido, a cargo de uma comunidade a
adotar, muitas vezes, uma política acadêmica recheada de preceitos,
dogmas e normas travestidas de paradigmas, apesar de utopicamente esta
comunidade ter sido concebida dentro de moldes estabelecidos por um
ideal platônico; e a se reciclar esporadicamente (períodos
revolucionários), tão logo se sinta imersa no terreno pantanoso que
semeou. Em contraste a essa atitude ingênua, há
que se destacar uma das conclusões de GOWER (1997) em seu livro sobre
método científico [38]: Mas
se os paradigmas forem tais que não possa haver boas razões a
justificarem sua adoção, a não ser causas sociais e ideológicas, então a
ciência natural não será mais do que uma dentre inúmeras maneiras que
temos para conversar uns com os outros. [...] O método
experimental não seria mais do que uma prática característica de um tipo
de “discurso” ou “narrativa” destituído de eficácia ou validade. Fora
dos diferentes contextos a que se relacionam, as melhores teorias não
seriam mais dignas de crédito nem menos arbitrárias do que a superstição
irracional. E, citando Gross e Levitt, conclui: “A ciência”,
de acordo com esse ponto de vista, “não é um corpo de
conhecimentos; pelo contrário, ela é uma parábola, uma alegoria, que
inscreve um conjunto de normas e códigos sociais e que não obstante, e
de maneira sutil, estão a representar uma estrutura mítica a justificar
o domínio de uma classe, de uma raça, ou de um gênero [masculino ou
feminino] sobre o outro.”
Popper, ao
contrário, defende uma atitude crítica sem limitações, deixando
claro ser esta a única mola propulsora na produção de conhecimentos.
Chega mesmo a se autoproclamar herege, como que a zombar do que pensam
seus parceiros filosóficos com respeito a sua atitude crítica.
Sua maneira de pensar está bem sintetizada nas seguintes palavras: As
teorias científicas distinguem-se dos mitos unicamente por serem
criticáveis e por estarem abertas a modificações à luz da crítica
[39].
Popper conclui o texto, de
onde esse pensamento foi extraído, expondo, com as seguintes palavras,
como encara aquela gloriosa diversão proporcionada pela ciência (vide
item 2): Para concluir, acho que só há
um caminho para a ciência ¾ ou para a filosofia:
encontrar um problema, ver a sua beleza e apaixonarmo-nos por ele;
casarmo-nos com ele, até que a morte nos separe
¾
a não ser que obtenhamos
uma solução. Mas ainda que encontremos uma solução, poderemos descobrir,
para nossa satisfação, a existência de toda uma família de encantadores,
se bem que talvez difíceis, problemas-filhos, para cujo bem-estar
poderemos trabalhar, com uma finalidade em vista, até ao fim dos nossos
dias.
O
amadorismo científico nem sempre chega a ser muito bem visto pelos
acadêmicos. Bernstein [41], por
exemplo, relata que muitos, dentre seus colegas profissionais da
ciência, chegaram a se sentir ofendidos quando Barzun comparou a ciência
a uma atividade lúdica, ou a uma gloriosa diversão (vide
item 2). Quero crer que
isso esteja relacionado a um problema cultural de amplas proporções e a
relacionar-se aos paradigmas próprios ao que se convencionou chamar
economia moderna, a economia após Adam Smith, assunto esse analisado em
profundidade por Kenneth LUX (1993)
[42]. Até mesmo a visão paradigmática de Thomas Kuhn parece-me
estar contaminada por uma imagem distorcida do que venha a ser
profissionalismo, e decorrente desta modernização da economia.
Ora, se pensarmos em amador como uma palavra a representar aquele
que gosta do que faz, ou que aprecia o que faz, ou que
é entusiasta pelo que faz, não me parece que profissional
seja um antônimo perfeito de amador pois, se assim fosse, o profissional
viria a ser aquele que não gosta do que faz, aquele que faz
por obrigação, um verdadeiro escravo da sociedade ou do
governo. Sem dúvida alguma, a economia
moderna não está muito longe de sufragar esta idéia e o academicismo
também não está muito longe disso, a serem verdadeiras as denúncias de
Brian MARTIN [43]; mas, a bem
da verdade, o profissional da ciência não só pode agir de maneira
amadorística, como também deve pensar nessa possibilidade com bastante
seriedade. O amadorismo tem se mostrado essencial e necessário para o
progresso das ciências, e é neste sentido que Popper afirmou que só
há um caminho para a ciência (vide citação completa no final do item
5.1).
É
interessante notar que Thomas KUHN
[44]
dedicou um capítulo inteiro de um de seus livros para expor a sua
ciência normal como uma atividade lúdica, sem que ninguém tivesse se
sentido ofendido com isso, ao contrário do exposto no parágrafo
anterior. Esta maneira diversa de interpretar os textos não se dá por
acaso. Aquilo a que Thomas Kuhn propõe como atividade lúdica não tem o
significado pleno assumido por Barzun, faltando aí aquela pitada de
amadorismo flagrada nos escritos de Popper. Com efeito, o objetivo da
ciência normal de Kuhn, utilizando suas próprias palavras, não
consiste em descobrir novidades substantivas de importância capital.
Conseqüentemente, e analisado sob este prisma, o prazer por novas
descobertas praticamente inexiste nos períodos de ciência normal.
Eliminado este prazer, estaríamos como que “enobrecendo” a ciência e, ao
mesmo tempo, nivelando o cientista à condição de servo ou, em outras
palavras, um profissional requintado e pago pelo Estado para satisfazer
os paradigmas próprios à economia moderna.
Um segundo
aspecto a enfatizar a ambigüidade entre amadorismo e profissionalismo,
diz respeito ao que poderíamos chamar objetividade da ciência. A
ciência, pensada como um produto acabado ou, até mesmo, subdividido em
disciplinas, sem dúvida alguma se impõe através de objetivos bem
definidos e a alicerçarem uma tecnologia. Mas que dizer sobre a produção
de novos conhecimentos científicos? Poderíamos deixar a intuição de
lado? Ou então, haveria como objetivar essa intuição? Será que em prol
do objetivismo poderíamos, a exemplo de Kuhn, deixar a intuição
totalmente à margem da ciência, se não para sempre, pelo menos nos
períodos que ele chama de ciência normal? Parece-me que muitos,
dentre aqueles que produziram conhecimentos científicos de elevada
qualidade, jamais concordariam com este objetivismo kuhniano. Citarei
apenas três, mas não me parece ser impossível expandir esta relação para
a casa das centenas ou mesmo dos milhares.
Uma das
frases célebres de um grande cientista do século XX, Carlo Rubbia,
poderá ser encontrada em meio a entrevistas que deu logo após ter
recebido o prêmio Nobel de física, em 1984: Nós somos a primeira
etapa do sistema. Uma etapa absolutamente essencial, mas que é
baseada, sobretudo, na falta de um fim específico. Outras pessoas
retomarão o que fizemos, e serão elas que tornarão as coisas práticas.
Sem nós, essas pessoas não existiriam, e nós, por outro lado, sem elas,
não teríamos nenhuma razão de ser [o grifo é meu]. O segundo exemplo
relaciona-se a um dos maiores ¾senão
o maior¾ cientistas
do século XIX, que teria dito algo semelhante e a fazer parte do
folclore científico. Conta-se que Faraday, ao ser interrogado sobre as
finalidades de uma de suas teorias, teria respondido com outra pergunta:
Para que serve uma criança ao nascer? Há quem ilustre essa
história com outra versão e não é impossível que ambas tenham de fato
acontecido. RUMJANEK (2004) [45], por exemplo, narra o episódio
com as seguintes palavras: ... o então ministro das finanças da
Inglaterra, William Gladstone, teria perguntado ao cientista: “Está
tudo muito bem, mas para que serve a indução eletromagnética?” A
resposta de Faraday: “Eu não sei, mas um dia o senhor poderá
cobrar impostos sobre isso.” A história mostrou que Faraday estava
com a razão. As teorias de Faraday alicerçaram quase toda a tecnologia
do século XX. Se hoje um determinado país pretender eliminar os impostos
conseqüentes à aplicação tecnológica das idéias de Faraday, este país
estará se condenando à insolvência em poucos meses. Para concluir,
reproduzo o pensamento de um físico teorizador português, João MAGUEIJO
(2003) [46], e deixo o mesmo para a reflexão dos leitores: a
ciência só vale a pena na medida em que nos é permitido perder-nos na
selva do desconhecido.
Outro
ponto a demonstrar a importância do amadorismo para a ciência
relaciona-se ao clima ou ao ambiente em que se deflagraram as grandes
revoluções científicas da era moderna. Muito mais do que a falência dos
paradigmas, considerados por alguns como os agentes causais dos chamados
períodos revolucionários, o que a história nos mostra é exatamente o
oposto: a maioria das revoluções teve em comum o fato de se originar
fora da jurisdição onde tais paradigmas eram dogmatizados e/ou
cultuados. Einstein, por exemplo, escreveu seus principais trabalhos
(relatividade restrita, efeito fotoelétrico e efeito browniano) na
qualidade de funcionário secundário de um departamento de patentes, ou
seja, como um físico amador. Mayer e Carnot, o primeiro como
profissional médico e o segundo como profissional engenheiro,
indiferentes ao academicismo vigente, forneceram as bases para a
revolução em física que, na primeira metade do século XIX, deu origem à
termodinâmica. Faraday foi outro cientista amador que somente chegou a
ser aceito nos meios acadêmicos após ter fornecido as bases para a
concretização do eletromagnetismo, o que acabou acontecendo graças aos
trabalhos de Maxwell. Há ainda aqueles que, por motivos diversos,
deixaram seus afazeres rotineiros de lado, podendo assim se dedicar a um
livre-pensar alheio aos paradigmas acadêmicos.
Os melhores exemplos são
Charles Darwin, em sua viagem no Beagle (1831-1836), financiada por seu
pai, e Isaac Newton, que iniciou uma revolução na física no annus
mirabilis (1666), o ano em que as universidades da Inglaterra
fecharam suas portas em virtude da peste negra. Digno de nota é o fato
de Newton, ao retornar à universidade, ter sido obrigado, para atender a
uma obrigação contratual, a deixar de lado esses estudos por mais de dez
anos, a fim de que pudesse se dedicar com afinco ao aprendizado de
teologia [47].
Há quem
diga que a ciência deveria ser neutra e não é impossível que o leitor,
após ter analisado cuidadosamente o disposto nos dois últimos itens,
acredite que eu esteja evoluindo na direção de concluir por esta
neutralidade. Há, no entanto, que se distinguir entre finalidades e
objetivos da ciência e comportamento ou postura do cientista
verdadeiramente pesquisador e/ou explorador da selva do desconhecido
[48].
Por ser a ciência um bem social, é de se esperar que ela se preste a
exercer influências relevantes sobre a sociedade e isso, de fato,
acontece naturalmente. Em contrapartida, há de se esperar uma certa
reciprocidade e, assim sendo, seria uma atitude ingênua, como esclarece
FREIRE-MAIA (1995) [49], defendermos, num sentido absoluto, a tese da
neutralidade da ciência. A ciência, enquanto bem social, sofre
influências várias da sociedade, em especial de natureza política,
econômica e cultural, e não poderia ser diferente. O que não se pode, e
não se deve, é cair no extremo oposto, a ponto de confundirmos ciência
com parábola ou alegoria, utilizando as palavras de Gross e Levitt,
conforme a citação de Gower e reproduzida no item 5.1.
A ciência é um processo complexo e a comportar outros métodos mais
abrangentes do que aquele apresentado até aqui como método científico.
Em meio a essa complexidade, e a fim de caracterizar as etapas de
produção de conhecimentos científicos, há quem proponha subdividir a
ciência em domínios, nem sempre bem definidos. Fala-se então em ciência
pura, ciência aplicada, ciência programada, tecnologia,
ciência-disciplina, ciência-processo, etc. Provavelmente irei analisar esse assunto com
mais detalhes nos próximos artigos desta série, mas é importante esclarecer que ao
raciocinarmos frente a algumas dessas subdivisões, sentir-nos-emos com
freqüência compelidos a deixar o amadorismo de lado, optando então pelo
culto a um profissionalismo objetivista. Com efeito, um engenheiro, ao
desenvolver um protótipo (tecnologia), raramente poderá se dar ao luxo
de perder-se na selva do desconhecido. Por outro lado, um professor de
ciência (ciência-disciplina), mesmo ciente de sua tarefa primordial, a
propiciar o desenvolvimento da atividade criativa de seus alunos, não
deve se dispersar a ponto de colocar em risco o desenvolvimento de uma
programação curricular. Assim também as atividades em núcleos de
pesquisas ou em disciplinas de pós-graduação devem seguir programações
bem definidas, chegando com freqüência a propiciar um certo grau de
engessamento no processo de produção de conhecimentos, mas nada tão
rígido e que não possa ser analisado, adaptado ou modificado por um
orientador perspicaz, ou então levado a discussões em seminários.
A despeito das aplicações bem definidas e/ou programações dirigidas a um
cumprimento curricular, nunca é demais realçar que a ciência, em seu
procedimento inicial é um investimento a fundo perdido e, como tal, sem
expectativa de retorno. Neste sentido justifica-se a adoção do termo
ciência pura naquele estilo adotado por Faraday, um dos cientistas
caracteristicamente amador do século XIX, conquanto possamos
considerá-lo, sem medo de errar, um dos precursores do avanço
tecnológico que vingou no século XX. É importante realçar a história
dessas fases iniciais a privilegiarem uma ciência aparentemente sem
finalidade imediata, pois que são períodos de elevada fertilidade e a
propiciarem os grandes avanços científicos testemunhados pela
humanidade.
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