O MOVIMENTO ABSOLUTO E A FÍSICA DE NEWTON
Publicado no Espaço Científico Cultural em 27 de Novembro de 2004
Alberto Mesquita Filho
1ª Parte
1. A existência (ou a realidade) do movimento
A existência do movimento é um fato constatável. Por exemplo, ao escrever
este artigo noto que o indicador, a assinalar onde deverá entrar a próxima
letra na tela de meu computador, move-se em relação à página do Editor de
Texto.
Figura 1: Movimento do indicador de
posição a mostrar onde deverá entrar a próxima letra
a ser digitada no Editor de Texto.
Ao parar de digitar o indicador fica piscando, mas permanece em repouso
em relação à página, como que a esperar que eu digite a próxima letra.
Mas... e em termos absolutos? Existe um movimento absoluto? A resposta,
quero crer, comporta duas versões. Estudaremos neste tópico uma das
versões, deixando a outra para o próximo item.
Numa das versões, digamos a VERSÃO 1, poderíamos dizer que o indicador
move-se em relação à página, ou então que a página move-se em relação ao
indicador. Uma destas situações, ou até mesmo ambas, seria observada,
qualquer que fosse o referencial adotado. Sob esse aspecto, o movimento
por si só seria algo absoluto. Não obstante, esse caráter absoluto não
seria uma propriedade dos objetos [*], mas sim algo a relacionar-se com
o referencial, ou seja, com a postura do observador. Como o observador
sou eu, e estou vendo a página como se estivesse fixa, digo que quem se
move é o indicador. Neste caso não podemos afirmar que o movimento do
indicador ou da página é absoluto, mas podemos garantir que um dos dois
(o indicador ou a página) está em movimento em relação ao outro. Ou então,
que os dois estão em movimento em relação a um terceiro objeto qualquer a
acompanhar o observador. Digamos, neste último caso, que a minha cadeira
estivesse oscilando lateralmente. Parece ficar claro que, mesmo
aceitando-se esta relatividade, nem tudo neste suposto mundo seria
relativo. Existe pelo menos um dado absoluto a nos garantir a existência
daquilo que pode ser interpretado como sendo um movimento relativo.
Pensemos nos objetos A e B apresentados na figura 2 e que poderiam ser
duas naves espaciais situadas no espaço sideral. Na figura 2 à esquerda
elas estão representadas uma ao lado da outra e vamos admitir que assim
permaneçam no decorrer do tempo. Um observador fixo a uma das naves, dirá
que ambas estão em repouso, enquanto outros observadores poderão afirmar
que ambas estão em movimento, mas todos concordarão que uma das naves está
em repouso em relação a outra.
Figura 2: Explicação no
texto
Suponhamos agora que uma das naves esteja em movimento em relação a outra
e que um observador, fixo à nave B, descreva o conjunto como mostrado na
figura 2 à direita, qual seja, com a nave A em movimento e afastando-se de
B numa direção determinada (para cima da figura, no caso apresentado).
Neste caso, outros observadores, situados em outros referenciais,
descreverão o sistema com outras palavras. Dependendo do referencial,
afirmarão que um dos corpos (A ou B), ou ainda ambos, estarão em
movimento. Mas em nenhum caso chegarão a afirmar que as duas naves estão
em repouso, seja em relação a si (observador), seja uma das naves em
relação a outra (repouso relativo). Consequentemente, neste caso existe
uma característica absoluta e a diferenciar esta condição daquela
apresentada na figura à esquerda, onde em um dos referenciais A e B estão
concomitantemente em repouso.
Tanto neste caso (figura 2 à direita) quanto naquele apresentado
inicialmente (indicador / página - figura 1), e raciocinando fisicamente,
ninguém poderá contestar a seguinte verdade: Algo está se movendo,
qualquer que seja o referencial da observação. Portanto, e sob esse
aspecto, o movimento existe num sentido absoluto, sendo relativo apenas
quando pensamos em descrever em qual dos objetos esta propriedade foi
constatada. O movimento não seria uma propriedade da matéria em si, mas
algo mutável e a depender da postura do observador. Talvez fosse possível
negar este movimento absoluto, mas creio que cairíamos numa filosofia a
se opor ao existencialismo (no caso, a se opor à hipótese da existência
do movimento), e não será pretensão nossa evoluir nesta direção. Ao que
parece, Berkeley chegou a propor algo desse tipo, se não com relação ao
movimento, talvez com relação a um ou mais dos essenciais que estamos
considerando (espaço, matéria e movimento).
A VERSÃO 1 trabalha portanto com a realidade do movimento (realismo) e/ou
assume a existência do movimento (existencialismo) sem porém se opor ao
relativismo. Segundo esta versão, e para a descrição do processo, seriam
suficientes três hipóteses existenciais: espaço, matéria e movimento (ou
tempo). Sequer será necessária a introdução do construto matemático força,
haja vista que, nestes casos particulares, uma vez instalados os
movimentos, os objetos são deixados ao sabor da inércia.
Por outro lado, e como veremos oportunamente, toda a aparente fragilidade
epistemológica do modelo mecânico newtoniano reside principalmente nesta
sua virtude matemática: a de nos dar a falsa impressão de que princípios
mais fundamentais seriam desnecessários. Isso chegou a ser muito bem
colocado por Newton na Introdução do Livro III (The System of the World)
dos Principia, com as seguintes palavras:
Nos livros precedentes eu apresentei os princípios de filosofia que não
são, contudo, filosóficos, mas estritamente matemáticos
¾ou seja, aqueles
sobre os quais o estudo da filosofia pode se apoiar. Esses princípios são
as leis e as condições dos movimentos e das forças, os quais
relacionam-se especialmente com a filosofia. Mas, a fim de evitar que
esses princípios possam parecer estéreis, eu tenho ilustrado a
apresentação dos mesmos através de alguns escólios filosóficos (i.e,
escólios relacionados à filosofia natural), considerando tópicos que são
gerais e que parecem ser mais fundamentais para a filosofia, tais como a
densidade e a resistência dos corpos, os espaços vazios e o movimento da
luz e do som. [1]
Parece-me que Newton está assumindo que os princípios matemáticos, de
alguma maneira, retratariam a realidade experimental, ou seja,
descreveriam a natureza como ela se nos aparenta ser. Em vista disso,
poderíamos nos apoiar nestes princípios matemáticos para construir nossa
filosofia natural. Essa filosofia natural, no entanto, implicaria na
busca pelas causas a justificarem a realidade experimental, e essa busca
estaria sendo apresentada e/ou estimulada nos escólios de seus três
livros que compõem os Principia [2]. Conduta semelhante Newton adota em
sua Óptica [3], apenas que, ao invés de escólios, reuniu todas essas
pendências na Óptica III, através de 31 questionamentos, onde aponta os
caminhos possíveis para suas soluções. É bem verdade que, na óptica
newtoniana, a matemática, associada à experimentação, não tem esse poder
de nos iludir quanto à desnecessidade de uma conceituação mais geral e
aprofundada de seus construtos, o que ocorre no estudo da mecânica
(força, energia etc).
2 - O movimento absoluto e a experimentação
Obs.: Se o movimento da figura 3 estiver
atrapalhando a leitura, clique ESC ou no botão "Parar" ou "Interromper"
de seu browser.
A outra versão, qual seja, a VERSÃO 2, é mais complexa e, como veremos,
exige um ingrediente a mais, além de espaço, matéria e movimento. Vamos
pensar em dois globos girando em torno de um ponto comum. Os globos
estariam a uma mesma distância desse ponto comum, em oposição diametral, e
unidos por uma corda a passar por esse diâmetro. O centro da corda
coincide com o ponto comum do giro considerado. A pergunta que surge é:
Quem está girando? Os dois globos ou o observador?
Figura 3: Globos girantes em torno de um
ponto comum e unidos por uma corda.
A idéia original é de Newton, e surgiu como uma experiência de pensamento
e que está descrita no primeiro escólio dos Principia [4].
Essa experiência poderia ser feita hoje. Uma solução um tanto quanto
sofisticada seria realizá-la no espaço sideral, mas há meios bem mais
simples. Poderíamos utilizar um desses ambientes onde a NASA treina seus
astronautas. Ou melhor ainda, poderíamos utilizar um colchão de ar, um
aparato que trabalha com pucks e não com globos, mas o formato do objeto
não é o mais importante. Os pucks ficam como que suspensos no colchão de
ar devido a uma infinidade de furinhos em uma mesa especial, por onde sai
ar ininterruptamente. Se os pucks forem colocados em repouso, eles
permanecerão suspensos no ar, mas em repouso em relação à mesa. Se um
deles for colocado em movimento, este permanecerá com o movimento
imposto, pois o colchão de ar tem também o efeito de eliminar o atrito
entre o puck e a mesa.
Figura 4: Mesa com "colchão de ar" + 1 puck
Se prendermos dois pucks com uma corda, eles representarão o equivalente
aos globos da experiência de pensamento de Newton. Suponhamos que um
observador, situado acima da mesa, está observando a experiência e vê os
dois pucks girando em torno de um ponto comum. Suponhamos ainda que ele
não enxergue as bordas da mesa, logo não sabe se os pucks estão girando
em relação à mesa ou se ele (observador) está girando e, neste caso, os
pucks estariam em repouso em relação à mesa e, portanto, em relação ao
solo. Pergunto agora: Essas duas situações seriam totalmente equivalentes,
como estávamos pensando com o exemplo da VERSÃO 1 do item anterior? Seria
possível descobrirmos quem se move, se o observador ou os pucks, através
de alguma coisa a ser medida e cujo resultado se mostrasse diferente em
cada caso?
A resposta é sim. As situações são totalmente diferentes. No primeiro
caso, observador girando e pucks em repouso em relação à mesa, a corda
não ficará sujeita a nenhuma tração. Estou desprezando um possível
arraste do puck pelo ar que o mantém, que acredito seja de pequeno
porte (isso não ocorreria na situação ideal, ou seja, no espaço sideral).
No segundo caso, a corda estará sujeita a uma tração que será tanto maior
quanto maior for o giro dos pucks em torno do ponto central da corda. Esta
tração pode ser medida: seria suficiente enxertar um dinamômetro em meio a
corda, e este dinamômetro denunciaria a tração, podendo-se até mesmo
calcular qual seria a velocidade absoluta de giro e, desta forma, saber
quem se move, se o observador, os pucks ou ambos (pois isso também poderia
estar ocorrendo, ambos girando em relação à mesa).
Percebe-se então que por esta versão 2 existiria algo a falar a favor de
um movimento absoluto, pelo menos no sentido do movimento de giro. Mas não
dá para irmos muito além disso, pois este absoluto estaria se referindo à
mesa ou ao solo. E quem me garante que este movimento em relação ao solo
não é também relativo? Como já disse, estamos na Terra que se move em
relação ao Sol, que se move em relação à Galáxia, que se move em relação
ao... Universo! Existiria um ponto de referencia universal a indicar um
movimento absoluto? Esta é a grande pergunta, e a experiência interpretada
segundo a versão 2 serve apenas como algo a indicar um possível caminho a
orientar a resposta, mas até agora a dúvida persiste. Qual seria este
caminho? É o que veremos no item a seguir.
3 - A Informação do Movimento
Digamos que os dois pucks, caso estivessem em movimento em relação ao
solo, tracionassem a corda. Ou seja, tudo se passaria como se cada um
deles estivesse puxando o outro, através da corda, e graças a isso eles
mantém seu giro. Se cortarmos a corda eles deixarão de girar e sairão
pela tangente, num movimento retilíneo, cada um para um lado. Ou seja,
eles giram porque de alguma maneira estão se comunicando, e o canal de
comunicação é a corda. Neste caso não existe apenas a mesa (representando
ou contendo um espaço) com os pucks (representando a matéria) em
movimento, mas também a corda a transmitir bilateralmente uma mensagem do
movimento de cada um dos pucks para o outro (informação do movimento).
Cada um dos pucks reage a essa informação corrigindo sua inércia, de
retilínea para circular. Por outro lado, se o movimento absoluto fosse do
observador, e não dos pucks, ao cortarmos as cordas eles permaneceriam
girando em relação ao observador mas, rigorosamente falando, permaneceriam
em repouso, um em relação ao outro e ambos em relação à mesa ou ao solo.
Este giro relativo dar-se-ia independentemente de qualquer comunicação
entre os pucks (a tração na corda, neste caso, é nula). É nesse sentido
que digo que para pensarmos na possibilidade da existência de um
movimento absoluto num sentido não tão light como aquele descrito pela
VERSÃO 1, precisamos de outro ingrediente, e esse nada mais é senão a
informação do movimento. Ou seja, nesta versão as três hipóteses
existenciais (espaço, matéria e movimento) não são suficientes,
devendo-se acrescentar mais uma, e quero crer que já dei a entender qual
seria: a informação do movimento.
Como disse, não estou apresentando o problema resolvido, apenas indicando
um caminho a ser percorrido para chegarmos à solução. Mesmo porque, tomei
de empréstimo um exemplo de Newton, que por si só é complexo e próprio ao
macrocosmo, e apenas procurei adaptá-lo aos laboratórios da atualidade. No
microcosmo, entre uma partícula e outra, que porventura estejam a girar,
uma em relação à outra, não existe nada observável além do espaço, logo
não existe a corda a se servir como canal dessa informação de movimento.
De qualquer forma, é importante perceber que mesmo na intimidade dos
objetos que se nos aparentam como contínuos (a exemplo da corda), existe
muito mais espaço, ou vazio, entre uma partícula e outra, do que matéria.
Logo, entre uma partícula e outra da corda, a informação também trafega
por um espaço imenso, o mesmo território onde estaria a informação que
mantém a corda coesa e estruturada da maneira que a enxergamos.
Para
continuar a leitura clique na figura à direita
Þ
[*] É importante assinalar
que o "indicador" não é um objeto
¾ a não ser no terreno das
virtualidades eletrônicas¾ tendo sido
aqui apresentado apenas como uma ilustração didática.
[1] NEWTON, Isaac:
Principia - Mathematical Principles of
Natural Philosophy (Third Edition,
1726), A New Translation by I. Bernard Cohen and Anne Whitman (1999),
Berkeley, Univ. of California Press, p. 793.
[2] Os Principia têm 48 escólios. [Segundo o
dicionário eletrônico Houaiss para a língua portuguesa, escólio é um
comentário feito para servir ao entendimento dos autores clássicos ou,
ainda, breve anotação sobre algum texto com a finalidade de explicá-lo ou
torná-lo mais claro, mais compreensível.]
[3] NEWTON, Isaac:
Opticks (Based on the fourth edition, London, 1730), Dover
Publications, Inc., New York, pp. 339-406.
[4] Principia
(op. cit.), p. 414.
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