O MOVIMENTO ABSOLUTO E A FÍSICA DE NEWTON
Publicado no Espaço Científico Cultural em 27 de Novembro de 2004
Alberto Mesquita Filho
2ª Parte
4 - Uma experiência de pensamento
Um pesquisador, a ser chamado por observador O, construiu um mini-laboratório (mini-lab) convidando um seu colega, a ser chamado por observador O', para que permaneça no interior do mini-lab para ajudá-lo em suas pesquisas. O mini-lab anda sobre trilhos perfeitos, sem atrito, e vamos assumir, por facilidade, que não há gravitação neste local. Vamos desprezar também outros atritos e viscosidades. Pelo princípio da relatividade de Galileu é de se esperar que as leis do modelo mecânico newtoniano, válidas no laboratório original, sejam válidas também neste mini-lab, sempre que ele estiver com velocidade constante em relação a um referencial fixo ao laboratório original.
No interior do mini-lab existem duas bolinhas A e B e duas molas, como mostra a figura 5. As bolinhas A e B estão fixas a molas comprimidas e travadas, e em repouso em relação ao mini-lab. Uma terceira bolinha C está no teto do mini-lab e no compartimento exterior, mas fixa ao mesmo. No laboratório original que contém o mini-lab existe uma terceira mola fixa ao teto. Esta terceira mola não está comprimida e localiza-se exatamente no trajeto por onde irá passar a bolinha C quando o mini-lab entrar em movimento.
Figura 5: Início do movimento do mini-lab.
Explicação no texto
Num dado instante o observador O aciona um mecanismo a colocar o mini-lab em movimento (figura 6) a uma velocidade v (pode ser uma velocidade pequena, pois não vamos aqui testar a teoria da relatividade de Einstein). Quando a bolinha C encostar na mola distendida, ela começa a comprimir a mola e vamos supor que, através de um mecanismo apropriado, ela solte-se do mini-lab e se fixe à mola exterior (deixando portanto de acompanhar o mini-lab). Ao final da compressão a mola trava-se, graças a outro mecanismo apropriado. Exatamente nesse instante o observador O' aciona um mecanismo a destravar as duas molas interiores e a soltar as bolinhas A e B. Estas ficam então soltas no espaço recebendo o impulso das molas ao se distenderem. Vamos supor, por facilidade, que o aparato foi construído de tal maneira que as duas bolas adquiram uma velocidade v, em relação ao observador O', igual à velocidade do mini-lab em relação ao observador O. Nestas condições teremos, ao final da experiência, as duas bolinhas A e C em repouso em relação ao observador O e a bolinha B com a velocidade 2v (figura 7). Em relação ao observador O', do mini-lab, as bolinhas A e C afastam-se para a esquerda na velocidade v e a bolinha B afasta-se para a direita também na velocidade v.
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Figura
6: Mini-lab em movimento. Encontro da bolinha C com a mola superior. |
Figura
7: Mini-lab em movimento. Situação final. |
Em termos do modelo mecânico newtoniano, creio que seria relativamente fácil explicar tudo o que está acontecendo ou que aconteceu durante todo o processo. Também não será difícil perceber que cada um dos observadores irá concordar que a energia, da maneira como é definida em física clássica, se conserva (a seguirmos os cânones do modelo citado), se bem que os argumentos utilizados serão diversos, pois eles estão em referenciais distintos. De qualquer maneira, existem alguns componentes comuns a ambas interpretações e a independer do referencial, quais sejam: 1) a energia armazenada na mola que foi comprimida; 2) a energia das duas molas que se distenderam, e que acabou se transformando em energia cinética das bolas A e B no referencial do mini-lab (e estas
últimas sim, serão diferentes de um observador para outro); e 3) a energia correspondente ao impulso inicial a colocar o mini-lab em movimento.
Eu não vou entrar em maiores detalhes a respeito da localização e/ou comparação dessas energias relativas e não-relativas, pois acredito que este seria um exercício interessante para ser feito individualmente. Se o leitor optar por aceitar este convite e, por um motivo qualquer, se atrapalhar com essas energias, ou achar que existe alguma coisa esquisita no problema, sugiro que elucide suas dúvidas consultando os
anexos a) e b) deste artigo. Para o entendimento do que se segue, a leitura do anexo pode ser deixada de lado, pois o que estou pretendendo chamar a atenção não seria nada a se opor frontalmente ao modelo mecânico newtoniano, que sem dúvida dá conta do problema com relativa facilidade. Na realidade, estou pretendendo analisar esta experiência de pensamento sobre um outro prisma, aquele relativo a um possível absolutismo do movimento. Em particular, pretendo mostrar que esse absolutismo do movimento não implica na existência de um referencial absoluto, pensado como algo a ser fixado num hipotético espaço absoluto. Este espaço absoluto poderia até mesmo existir, a retratar o que considerarei como sendo uma propriedade histórica (e/ou teleológica), mas isso não implica que um referencial fixo a um corpo em repouso neste espaço seria um referencial absoluto (essa não implicação será discutida oportunamente).
5 - O movimento absoluto segundo Newton
Vamos, em primeiro lugar, procurar entender como Newton caracterizava o que chamou movimento absoluto, ou seja, como diferenciaria este movimento absoluto dos movimentos relativos. Segundo Newton:
O movimento verdadeiro ou absoluto não pode ser criado ou modificado exceto pela ação de forças, mas o movimento relativo pode ser criado ou modificado sem a ação de forças.
[5]
Com esta frase Newton está pretendendo colocar a relatividade e o seu MODELO funcional, mas acima de tudo matemático, nos seus devidos lugares frente à sua FÍSICA, por mais que este modelo e esta relatividade sejam utilíssimos para a resolução de problemas. Ou seja, ao mudar de referencial nós não estamos descaracterizando o absolutismo do movimento, simplesmente estamos utilizando uma de suas propriedades mais fundamentais, a da conservação das diferenças desse movimento absoluto com a mudança do referencial. Em outras palavras: Newton sabia que poderia lançar mão desta propriedade, tanto é que chegou a afirmar:
E, portanto, não tenho escrúpulos em propor
os princípios de movimento
[...], sendo eles de uma extensão muito geral, e deixar suas causas
serem descobertas.
[6]
Que causas seriam essas? Quero crer que seriam as causas responsáveis pelas forças naturais, aquelas que respondem pela existência de um movimento absoluto. Ora, dizer que existe um movimento absoluto é quase o mesmo que dizer, utilizando um termo da física clássica pós-Newton, que deve existir uma correspondente energia mecânica absoluta. Esta energia absoluta deveria ser independente do referencial, logo não tem o mesmo sentido daquela energia cinética que nos acostumamos a utilizar. Percebam que, no exemplo acima, a energia das molas pode ser pensada como absoluta, mas a energia cinética clássica possuída por cada objeto varia de observador para observador, logo a energia mecânica presente em cada objeto é sempre relativa. Com efeito, a energia mecânica varia afim de satisfazer uma contabilidade bastante requintada, a ponto de conseguirmos fechar o balanço sempre concluindo por uma conservação desta energia relativa.
6 - Interpretação da experiência de pensamento
Com esses pensamentos em mente, ou seja, através deste novo prisma, vamos procurar interpretar a experiência de pensamento descrita no item 4. Vamos raciocinar em termos de movimento num sentido amplo, e não apenas com respeito a velocidades relativas. As três bolinhas (A, B e C) foram inicialmente submetidas a um mesmo empurrão (parte daquele que colocou todo o mini-lab em movimento) e graças a isso adquiriram inicialmente movimentos semelhantes (figura 5). No instante do choque da bolinha C com a mola superior, as bolinhas A e B receberam um segundo empurrão das respectivas molas, enquanto a bolinha C empurrou a mola superior (ou, se quisermos sofisticar, sofreu um empurrão negativo). Será que poderíamos em sã consciência afirmar categoricamente que as bolinhas A e C estão dotadas do mesmo movimento? Por mais que a física newtoniana
¾simplificada em suas três leis, a se compatibilizarem com a relatividade de Galileu,¾ nos induza a concluir que A e C estão dotadas do mesmo movimento relativo, eu diria que A recebeu dois empurrões, enquanto C recebeu um empurrão inicial, proveniente do laboratório, e o devolveu à mola. Em outras palavras, na segunda etapa da experiência, e para voltar a um suposto repouso correspondente às condições iniciais da experiência (a simular um repouso absoluto), a bolinha A recebeu um empurrão enquanto a bolinha C cedeu esse mesmo empurrão.
Rigorosamente falando, o máximo que eu posso inferir é que A e C estão com velocidades nulas em relação a O, mas nada me garante que, em sua estrutura interna, A e C estejam em estados idênticos do ponto de vista de uma mecânica absolutista
¾principalmente se pretendermos aceitar o argumento newtoniano da existência de um movimento absoluto. Sem dúvida existe aí o calor para complicar, mas eu quero crer que em teoria é possível pensarmos em processos totalmente elásticos e sem a dissipação de calor.
Pensando em termos de energia absoluta, eu diria que a bolinha A recebeu energia duas vezes, enquanto a bolinha C recebeu energia no primeiro processo e cedeu esta mesma energia no segundo processo. Relativisticamente falando, a contabilidade dá certo nos dois referenciais, desde que utilize-se o conceito de energia relativa. Não obstante, pensando-se em termos absolutos fica a impressão de que parte da energia agregou-se a uma hipotética energia interna da matéria. [Essa energia interna não deve ser encarada como idêntica à energia interna definida em termodinâmica, pois esta última também é uma energia pensada em termos relativos.] Neste caso, nos dois referenciais tanto a bolinha A quanto a bolinha B deveriam ter uma energia absoluta igual no final da experiência. A bolinha C, por sua vez, teria uma energia absoluta inferior à das bolinhas A e B.
Coloquemos, por hipótese, o nosso laboratório naquele suposto espaço absoluto teleológico caracterizado por Newton como o
sensório de Deus. Nestas condições, o mini-lab, na
figura
7, estaria a uma velocidade v em relação a um referencial fixo neste laboratório em repouso absoluto. As bolinhas A e C estariam em repouso em relação a este referencial e/ou a esse espaço absoluto, e não obstante, adotando-se a visão newtoniana (relação movimento absoluto/força), a bolinha C estaria em repouso absoluto, enquanto que a bolinha A estaria em movimento absoluto de magnitude idêntica à da bolinha B, a despeito de sua velocidade ser nula.
O espaço absoluto, assim como o referencial absoluto, perde então o seu significado físico, nada obstando a que conserve sua existência dentro de um contexto de importância histórica (e/ou teleológica). [Lembro ainda que a situação parece ser simétrica, pois a experiência teria sido a mesma caso invertêssemos a direita pela esquerda (a menos que o espaço do mundo em que vivemos não fosse isotrópico)]. Não obstante, ainda que essa idéia de espaço absoluto fique a desejar (rigorosamente falando eu diria que ele seria de pouquíssima importância para a física e, quiçá, importante para a religião
¾neste caso seria o referencial da criação e/ou do Criador no ato da criação), o movimento absoluto permanece como um argumento a nos deixar de cabelo em pé. Digo isso porque esta experiência de pensamento, se por um lado chama a atenção para a possibilidade de interpretarmos o movimento sob um novo prisma, por outro coloca-nos frente a uma situação bastante esquisita, pois fica-nos a impressão de que para salvarmos a idéia newtoniana de movimento absoluto, emerge um novo conceito, o de uma energia absoluta que não corresponde exatamente à mesma energia definida em física clássica. Em outras palavras, dois corpos em estados mecânicos diversos frente à mecânica absolutista inerente à FÍSICA newtoniana, poderiam simular ocupar um mesmo estado mecânico, quando visualizados pelo prisma do MODELO newtoniano simplificado em suas três leis.
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Þ
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[5]
Principia (op. cit.), p. 412.
[6]
Optiks, (op. cit.), Livro III, Questão 31, p. 402.
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