DA FÍSICA ANTIGA À FÍSICA MODERNA

framesAlberto Mesquita Filho
Capítulo 4 do Livro
Os átomos também amam
©
1984

 

I — INTRODUÇÃO

A física existe desde que o homem existe; mas os testemunhos de que ele tenha notado sua existência coincidem com a fixação da localização da capital da sabedoria humana, pelos historiadores ocidentais, na região mediterrânea. Corresponde este período ao apogeu da física antiga atingido graças principalmente a Tales, Demócrito, Pitágoras, Arquimedes, Platão e ao maior pensador de todos os tempos: Aristóteles. A pobreza de recursos experimentais, longe de limitar o desenvolvimento da ciência grega, foi o fator gerador de uma série infindável de teorias, justificando a idéia de que quase todos os grandes descobrimentos científicos do segundo milênio da era cristã tivessem sido previstos pelos gregos.

A ciência grega caracterizou-se pela procura de princípios unificadores que regessem todos os fenômenos naturais: esta era a lógica suprema a utilizar-se das demais lógicas na procura incessante de sua auto-justificação. A formulação de leis (lógica indutivo-dedutiva) era, portanto, secundária, ainda que necessária; como também necessário era o estabelecimento de teorias baseadas em suposições (analogia e lógica transcendental).

As leis obtidas diretamente da observação era encaradas como partes de um todo mais geral. As suposições ou postulados, ao passarem pela peneira da verdade (corroboração observacional das previsões a que levavam), transformavam-se em leis, aumentavam o número de peças dos quebra-cabeças que, uma vez montados, traduzir-se-iam em princípios unificantes (1). E estes princípios deveriam ser tão rígidos a ponto de não permitirem jamais sua negação, até mesmo por experiências ainda não executadas. A crença nesta lógica suprema caracterizou não apenas a física aristotélica mas representa a essência de toda a ciência e filosofia da Antiguidade. E revive, de tempos em tempos, na mente daqueles que, por vias diversas, têm chegado próximos do que consideramos como verdade científica.

Infelizmente os aristocratas gregos, detentores da ciência e sabedoria de seu tempo, não deixaram descendentes em condições de evoluir seus pensamentos. A queda do império grego, seguida pela queda do império romano, deixou a ciência acéfala. Talvez jamais se saiba a causa verdadeira do fim destes impérios mas há indícios sugestivos de que a aristocracia greco-romana tenha sido envenenada, sem perceber, pelo chumbo contido em panelas, "lataria", cosméticos e tintas (2).

Foram necessários mais de mil anos para que o homem se sentisse à altura de contestar as afirmações de Aristóteles. E a ressurreição da física, iniciada por Copérnico e Galileu, culminou com o que chamamos de física clássica ou newtoniana ou, ainda, a segunda fase áurea da física. Mas a solução de continuidade impediu o confronto entre os pregadores de uma nova física e os então inexistentes defensores da física antiga. E por ser mais fácil descobrir falhas do que virtudes, muitos erros foram apontados e muita coisa foi redescoberta. E como também muitos conceitos foram redefinidos, sem a preocupação da observância às normas antigas, houve uma confusão babélica responsável pela negação de preceitos que talvez jamais tenham sido estabelecidos como tais por seus pretensos autores; e, consequentemente, muitos conceitos importantes foram deixados de lado. E a física que surgiu, embora tenha muito da física aristotélica, não tem o principal: a sua essência.

Newton chegou a "colocar a casa em ordem" e em física pelo menos ultrapassou em muito a Aristóteles; mas foi uma pena que não tivesse sido seu discípulo. Não importa quanto o tivesse negado; bastaria que captasse a linha de pensamento dos filósofos gregos e talvez as leis da inércia, da gravitação e da ação e reação surgissem como consequência lógica da evolução da física antiga: uma física baseada em princípios que, ao serem testados experimentalmente, nos levassem à quantificação, baseada em leis.

A física newtoniana admite ainda a formulação de leis de campo de aplicação restrito, o que evidencia a utilização da lógica transcendental. Um exemplo clássico é o estudo dos gases reais que em condições hipotéticas "comportam-se" como gases ideais; a própria lei da inércia é outro exemplo. São leis limites, mas observáveis: obtém-se experimentalmente estes limites.

Embora a física de Newton apóie-se em leis e não em princípios, nota-se que a lógica dos filósofos gregos o perseguiu por toda a sua vida. E não foi outro o motivo pelo qual morreu convicto de que a luz tinha uma natureza corpuscular: as leis verificadas para a luz não poderiam em hipótese alguma estar dissociadas das leis que regiam o comportamento cinético dos corpos materiais.

Pouco importa o que Newton pensasse. Sua física, quando baseada na constatação pura e simples de fenômenos observáveis, parecia ignorar seu sonho. E seus seguidores foram, pouco a pouco, abandonando sua lógica e aceitando definitivamente a teoria ondulatória da luz.

As consequências não tardaram; e a mesma física experimental, alheia à lógica antiga e que derrubou a teoria corpuscular da luz de Newton, obedecendo à anti-lógica universal abalou todos os demais conceitos estabelecidos por Newton. E o terremoto em que sucumbiu a física clássica, no final do século passado (3) só não teve consequências maiores graças à intervenção providencial de Einstein que, após tentar de todas as maneiras salvar o que havia de bom na física newtoniana, viu-se obrigado a modificar quase todos os seus pilares. E a física que surgiu, embora tenha muito da física newtoniana, não tem o principal: a sua essência.

A física einsteiniana, tal e qual a sua precursora, apoiou-se rigidamente em resultados experimentais. Porém, suplantou-a na utilização da lógica transcendental e, despojando-se de preconceitos, passou a encarar a observação dos fenômenos naturais com a preocupação de questionar o óbvio. Sob este aspecto aproximou-se da física antiga; mas distanciou-se no modus operandi; distanciou-se na sua essência. Não se fixou na busca de princípios nem de leis mas sim na procura de postulados capazes de justificarem os fenômenos observados —fenômenos incompatíveis com a física newtoniana— e que levassem a novas conclusões corroboráveis experimentalmente —previsão de fatos. Utilizou-se ainda de uma norma diversa das anteriores: "Einstein estava convencido de que a beleza é um princípio guia na busca de resultados importantes em física teórica" (4). E em termos de beleza ninguém o superou.

Einstein também guiou-se, durante toda a vida, pela lógica dos antigos gregos. E outro não foi o motivo pelo qual morreu convicto de que os eventos da natureza não poderiam ser análogos a um jogo de azar: uma conclusão aparentemente apoiada na sua física.

Pouco importa o que Einstein pensasse. Seus seguidores, pouco a pouco, estão abandonando a sua lógica. E a sua física, baseada em suposições e na estética, está lentamente se transformando numa física alicerçada em afirmações aceitas como verdades incontestáveis, verdadeiros dogmas cognominados de princípios, porém sem a consistência que deveriam apresentar para passar por um crivo aristotélico.

Mas a física que está surgindo tem um lado bom, ainda que apoiado numa regra estranha. O lado bom é que ela conserva, na apresentação dos resultados, a beleza introduzida por Einstein. Segundo Dirac, "parece que, ao se trabalhar a partir do ponto de vista de obter beleza nas equações e tendo-se intuição, se está numa linha segura de progresso" (4). O estranhável é que a matemática deixa de ser uma forma do físico expressar seus resultados para se transformar num conjunto de peças que, por um método baseado em tentativas e erros, vai lentamente procurando decifrar a realidade física. Que me perdoem os físicos modernos mas, ainda que concorde com a beleza da apresentação de seus resultados, não consigo imaginar um método mais feio. É como se um médico, frente a um doente sem diagnóstico e cinquenta medicamentos, passasse a utilizar estes últimos um a um, até encontrar aquele que curasse o paciente. Os riscos seriam grandes, o tempo perdido seria enorme, e os custos seriam altíssimos; e, não obstante, a medicina poderia até mesmo evoluir; como a física tem evoluído, a despeito da persistência de um fator de incerteza nesta evolução. E, a continuar neste passo, quando não sei mas certamente chegará a negar alguns de seus dogmas. A história se repetirá.

II — A ESTRUTURA DA MATÉRIA NO CONTEXTO HISTÓRICO

Tales parece ter sido o primeiro a preocupar-se com a natureza íntima da matéria e a imaginar que tudo o que existe na natureza seria originário de um único elemento. A serem verdadeiras algumas teorias atuais sobre a evolução da matéria no Universo, podemos dizer que Tales errou apenas ao afirmar que este elemento era a água.

O conceito de Tales foi ampliado por Anaximandro e Demócrito. Este último admitiu ser a matéria constituída por partículas diminutas, invisíveis e indivisíveis. Poderia ter acrescentado o termo indistinguíveis mas preferiu manter-se fiel aos preceitos estabelecidos por outros filósofos gregos e "oficializados" por Aristóteles, que afirmavam a existência de quatro elementos básicos: terra, ar, fogo e água. Eram, portanto, quatro os átomos de Demócrito. Demócrito foi mais além ao admitir a existência de um espaço vazio entre as partículas, o que foi posteriormente demonstrado por Herón, um estudante de Alexandria, através da verificação da compressibilidade do ar; mas foi só após a redescoberta deste fenômeno pelo inglês Robert Boyle que a concepção da natureza descontínua da matéria chegou a ser definitivamente aceita.

O conceito de elemento químico como entendemos hoje —substâncias que não podem ser decompostas quimicamente— foi criação de Boyle. Difere substancialmente dos elementos de Demócrito: os elementos de Boyle são indivisíveis quimicamente enquanto os de Demócrito foram imaginados como indivisíveis fisicamente. O átomo, como hoje concebemos, representa a indivisibilidade química, tendo sido imaginado pela primeira vez por Dalton, que apropriou-se da palavra grega para designar as partículas extremamente pequenas que constituíam os elementos de Boyle.

Erraram, é verdade, os gregos, na exemplificação dos elementos básicos, mas foi um erro mais que justificável se considerarmos os parcos recursos experimentais que dispunham. Como também justificável foi a concepção errônea de Dalton de que seus átomos seriam estes elementos. Ainda hoje os homens não conseguiram detectar experimentalmente partículas fisicamente indivisíveis; e ainda hoje existem teorias que, tal e qual as idéias de Aristóteles, assumem a existência de quatro elementos básicos chamados "quarks".

Mas o conceito de estrutura da matéria adotado pelos físicos modernos não é tão simples. Nem ao menos um pouco complicado. É extremamente revolucionário, utópico, inimaginável, trans-transcendental. E não obstante, dotado de belíssimas equações matemáticas que encaixam-se como uma luva no... No quê? Retiramos a luva e não enxergamos nada!

Sinto-me obrigado a recorrer a um pensamento de Pitágoras (alguns atribuem-no a Heráclito) que certamente provocará risos no leitor, tamanha a sua obviedade: O que é, é, e não pode não ser, enquanto for. As duas últimas palavras (enquanto for) foram acrescentadas para que não pairem dúvidas quanto à noção de transformação que certamente existia na mente de tão ilustre pensador. A afirmação, engraçada ou não, pretende ser um princípio unificante, a abranger todo o mundo do ser. É óbvio que se hoje à noite você deixar seu carro na garagem e amanhã cedo ele ainda estiver lá, ele existiu durante toda a noite; da mesma forma que o Sol não deixa de existir ao cair da tarde. Mas nem tudo o que é óbvio é certo. E há quem acredite que um elétron pode ser um corpúsculo enquanto observado, deixando de sê-lo entre as observações. E se em duas observações sucessivas ocupar duas posições distintas, dizem que ele passou de um lugar para o outro sem ocupar nenhuma posição intermediária entre as mesmas, o que é coerente com o fato de que ele não existiu como corpúsculo entre as observações. É evidente que esta crença não é gratuita; tem sua lógica; tem seu apoio experimental; e tem seu lado óbvio assentado em suposições que, se verdadeiras, substituem a afirmação de Pitágoras por outra: O que é pode não ser, desde que não observado.

A origem destas idéias fantásticas reside na negação da teoria corpuscular da luz, de Newton, e na aceitação da teoria ondulatória de Huyghens. Se a menor fração do que chamamos luz fosse um corpúsculo rígido e indivisível, jamais poderíamos explicar determinados fenômenos ópticos "observados pela primeira vez por Newton" como, por exemplo, a interferência (5). Se por outro lado a luz fosse um fenômeno ondulatório, representado pela propagação de vibrações de corpúsculos materiais situados num meio hipotético chamado éter, a difração e a interferência seriam explicadas. É verdade que nem tudo era explicado pela teoria ondulatória; mas alguns "acertos" aqui, algumas abstrações ali, algumas equações acolá, e pronto: a teoria estava perfeita. E o mundo físico rendeu-se ao "novóbvio".

Quando ninguém mais se propunha a ignorar o éter, Michelson e Morley, numa experiência muito bem conduzida, constatam o inesperado: a propagação da luz através do éter não era tão simples quanto fora supostamente aceita. Ou talvez fosse mais simples do que o esperado, mas ninguém ousou "regredir" à teoria corpuscular de Newton; aliás, não havia como explicar determinados fenômenos ópticos através desta teoria; a menos que tais corpúsculos não fossem tão rígidos ou tão indivisíveis mas parece que ninguém se aventurou a adentrar por este terreno. Todas as teorias surgidas para explicar a aberração encontrada apoiaram-se fortemente na teoria ondulatória da luz. E novamente a teoria, ainda que modificada, estava perfeita. A luz não mais era a propagação da vibração de corpúsculos etéreos; o éter não mais existia, pois não mais era necessário. Luz não era matéria e sim energia em propagação; era um tipo de energia que não necessitava de um meio material: a energia eletromagnética.

O que é energia eletromagnética em propagação, até hoje ninguém explicou, exceto as equações de Maxwell. Mas como equações não foram feitas para explicar fenômenos físicos, e sim quantificá-los, o conceito ainda permanece abstrato. Algumas observações concretas, posteriores à teoria, pareciam não concordar com a mesma: tratavam-se de interações elétron-fóton, que não admitiam outras explicações que não fosse a de interações entre partículas. Mas se luz não é matéria nem necessita de matéria para propagar, como aceitar que algumas vezes comporte-se como se fosse composta por partículas? Será que o que enxergamos é matéria e o que existe é energia? Será que o que é pode não ser, desde que não observado?

A idéia, ainda que aparentemente absurda, foi evoluída por De Broglie que "chegou a imaginar que todas as partículas tivessem dupla personalidade" (6), possibilitando desta forma o surgimento de um novo ramo do saber: a "psicofísica". E não foi difícil equacionar esta dualidade. Aliás, não creio ser impossível equacionar que o leitor, ao ler este capítulo, seja constituído por matéria mas, ao interromper a leitura, transforme-se em uma onda. Mas, brincadeira à parte, a verdade é que a idéia de De Broglie chegou a ser confirmada experimentalmente para os elétrons (6); estes, ao atravessarem uma fenda estreita, exibem o fenômeno da difração. Logo, se não forem onda, certamente também não serão uma bola de bilhar em miniatura. Talvez sejam partículas complexas a brincar de "esconde-esconde" com os físicos modernos.

III — O MOVIMENTO DA MATÉRIA NO CONTEXTO HISTÓRICO

A física do movimento, ou mecânica, é tão antiga quanto a física da matéria. E não foram outros que não os gregos os primeiros a partirem em busca dos princípios que regem o movimento da matéria. E a lógica suprema, diretriz da física da Antiguidade deve, se não aceita, pelo menos se incorporar na mente de quem quer que ouse criticar os conceitos estabelecidos pelos gregos, sob pena de cairmos no ridículo de combatermos um inimigo inexistente, negando o que jamais foi afirmado. Erros de conceituação existem tanto na física antiga quanto na clássica e certamente serão encontrados na moderna; porém, em termos de lógica, a física da Antiguidade parece-me impecável.

É comum a crítica à afirmação de Aristóteles de que se alguma coisa se move, algo deve estar empurrando-a ou segurando-a enquanto estiver em movimento (7). Ora, a dualidade da afirmação assegura a sua veracidade em termos de física clássica: ou trata-se de um movimento acelerado, ou de um movimento retardado! Em nada esta afirmação entra em contradição com a lei da inércia de Galileu ou de Descartes, segundo alguns (8), a qual é uma condição limite e hipotética e que representa exatamente o ponto a partir do qual o ato de empurrar transforma-se no ato de segurar. Erros existem na física aristotélica do movimento apenas no estabelecimento de leis; ou seja, na mensuração dos fenômenos físicos. Assim, Aristóteles, segundo afirmam, acreditava que uma pedra ao ser lançada percorresse uma trajetória retilínea, sendo "empurrada" pela atmosfera até certo ponto; depois "cairia verticalmente: (7 e 9). Convenhamos que não é fácil, utilizando os recursos disponíveis na época, e abstendo-se de uma interpretação "ao pé da letra", negar categoricamente tal crença.

Outra afirmação de Aristóteles ridicularizada pelos senhores da verdade de nosso tempo seria a de que "os corpos pesados caem mais rapidamente que os leves". Por acaso não é verdade? Talvez não para os selenitas... para não dizer os lunáticos. "Mas os selenitas não respiram!" Não tem uma atmosfera a "segurar" os corpos que caem! "Vivem" num mundo fisicamente ideal, imaginado por uma mente privilegiada e incompreendida até mesmo por muitos de seus pretensos defensores. Refiro-me a Galileu, o primeiro, dentre os poucos físicos de nosso milênio (10), em condições de negar Aristóteles. Mas deixando as condições ideais de lado, qualquer criança sabe que no outono as folhas caem; e o fazem numa velocidade muito inferior que a da maçã que inspirou a Newton.

A física do movimento estava, portanto, na Antiguidade, caminhando a passos largos para a concretização de seu velho sonho: a constatação da existência de uma lógica suprema a unificar todas as ciências; e a obtenção dos princípios unificantes. Outro não foi o pensamento de Aristóteles ao admitir que a mecânica celeste obedecia a leis diferentes das que regem os movimentos da Terra. Estes últimos necessitam de um "empurrão" contínuo para se manterem indefinidamente com velocidade constante; nada se mantém na situação idealizada por Galileu se as condições não forem ideais. Os corpos celestes, no entanto, aproximam-se da inércia galileana; se não se movem retilineamente, pelo menos o fazem de maneira uniforme, contínua e constante. Atrito e vácuo eram pouco ou quase nada conhecidos na Antiguidade; e ainda hoje pouco se sabe sobre os mesmos. Até onde ia a atmosfera ninguém sabia, como também não sabiam os físicos há até bem pouco tempo até onde ia o éter; e os que julgam correta a hipótese da inexistência do éter não devem esquecer de que esta negação é baseada em suposições. Portanto, nada mais lógico do que admitir que alguém estaria "empurrando" os corpos celestes. Este era o limite da física grega; um ponto de indeterminismo onde só restava ignorar ou postular a existência dos "motores divinos principais". Até mesmo as mais modernas teorias que ousam imaginar partículas com energia negativa, na tentativa de construir um modelo de origem do Universo "a partir do nada", necessitam de um buraco negro gigantesco, e exterior a esse nada, cuja origem jamais será explicada pela própria teoria. Vê-se pois que os "motores divinos principais" de Aristóteles representam um recurso legítimo utilizado com outros nomes por todos aqueles que atingiram as fronteiras da ciência de sua época. Ridicularizar Aristóteles é o mesmo que não acreditar na evolução da ciência; é o mesmo que admitir que amanhã ninguém haverá de contestar os absurdos que hoje concebemos. É o mesmo que negar a ciência, pois que só existirá ciência enquanto as "verdades" puderem ser contestadas.

A mecânica newtoniana teve seu início com Galileu. Seu principal mérito foi notar que reduzindo o que hoje conhecemos como atrito, os fenômenos mecânicos observáveis aproximam-se cada vez mais da obediência a leis simples onde massa e volume deixam de interferir nos resultados. Já nos referimos às leis da inércia e da queda livre. Newton notou a ambiguidade desta última concebendo a lei da gravitação universal. Eram todas leis limites ou de campo de aplicação restrito e válidas, portanto, para situações ideais.

No auge da aplicação do novo método e em meio a tantos avanços constatados ou previstos, uma segunda abstração foi feita, talvez por Newton, talvez por algum de seus discípulos ou correspondentes: o conceito de ponto material. Era mais uma condição limite surgida, talvez, da verificação que, em relação ao sistema solar, a Terra pode ser representada por um ponto; da mesma forma que em relação a um estádio, a bola de futebol é um ponto. Mas daí a admitir que se sujeitem a leis semelhantes, convenhamos: foi um passo ousado. Ousado mas válido para o estágio em que a física se encontrava.

Se o Sol, a Terra e a Lua geram um campo gravitacional, porque não uma bola de bilhar, um nêutron ou um corpúsculo de luz? O nêutron não era conhecido naquela época mas o corpúsculo de luz já era suspeitado, pelo menos por Newton. Será que um corpúsculo de luz, ou mesmo um fóton da física moderna, gera um campo gravitacional? Se tiver massa, sim, dirá um seguidor de Newton; mas Newton nunca fez esta afirmação, embora considerasse seus corpúsculos como tais; e porque não com massa? Será que um fóton atrai outro fóton?

A comprovação de que o fóton é atraído por um campo gravitacional é relativamente recente. A luz oriunda de uma estrela curva-se ligeiramente ao atravessar o campo gravitacional solar; logo, se abstrairmo-nos das considerações relativistas a respeito da geometria do espaço, podemos dizer que os fótons são atraídos pelo Sol. Mas isso não é o mesmo que dizer que o fóton cria um campo gravitacional; e nem mesmo que o fóton atraia o Sol na razão direta de sua massa. Pois do contrário estaríamos admitindo a gravitação como uma propriedade inerente à matéria. E Newton, apesar de ter enunciado a lei da atração gravitacional, não quis assumir este compromisso. Afinal, ele não sabia, como ainda hoje não se sabe, a que se deve a atração gravitacional; e, ao que tudo indica, imaginava-a como se fosse um fenômeno complexo relacionado a princípios simples.

Mas sendo um fenômeno complexo, a gravitação não poderia ser gerada por uma partícula simples. E, para salvar seus princípios, Newton sacrificou suas leis, aceitando a luz como constituída por corpúsculos que talvez não as obedecessem integralmente. Poucos entenderam esse sacrifício. Sua lógica era perfeita mas não soube transmiti-la a seus discípulos. Talvez porque o fóton, ainda que não tão complexo, a ponto de criar um campo gravitacional, não fosse tão simples, chegando às vezes a simular um fenômeno ondulatório.

A mecânica de Einstein baseia-se na aceitação da luz como onda eletromagnética. E chega a explicar os achados de Michelson e Morley através de postulados a assumirem a constância universal da velocidade da luz no vácuo, incluindo uma absurda —no sentido em que vai contra o senso comum— independência do sistema referencial em consideração. Vejam que é impossível, ainda que mentalmente, situar um referencial em um feixe de luz. Se imaginarmos um referencial à velocidade da luz em relação à Terra, um feixe de luz com mesma direção e sentido se afastará deste referencial na velocidade da luz. E no entanto, em relação à Terra, ambos possuem a mesma velocidade.

A idéia, ainda que revolucionária, tem sua lógica, tem seu apoio experimental e tem o seu lado óbvio. E chega quase a explicar alguns aparentes absurdos da mecânica newtoniana. E, por falta de uma explicação menos fantástica para estes "absurdos", tem sido aceita, não sem contestações e não sem que se procure por uma explicação mais óbvia, mais realista e mais lógica.

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Vide questões surgidas na Ciencialist sobre o tema apresentado.


Este artigo, escrito em 1983, foi publicado no número 7 da revista Faculdade, da Faculdade São Judas Tadeu (hoje Universidade) e posteriormente transformado em capítulo (capítulo 4) do livro Os átomos também amam, do mesmo autor (1984). Em janeiro de 2001 foi postado na lista de discussão Ciencialist (thread Evolução da Física), e as questões mais significativas seguem em anexo.

Referências Bibliográficas:

  1. Num trecho que escrevi posteriormente comento esses princípios em detalhes (vide Eletromagnetismo e Relatividade)
  2. E.E.SNYDER, Historia de las ciencias fisicas, Ed. Labor S.A., Barcelona, 1973, p. 29-30.
  3. G.W.CASTELLAN, Físico Química 2, Ao Livro Técnico S.A., Rio de Janeiro, 1973, p. 484.
  4. A.HERRERA, Verdade Científica e Beleza 1, Folha de São Paulo, 26/6/83, p. de Educação (Ciência e Sociedade).
  5. J.WALTER, Imagenes de interferencia en un espejo polvoriento (Taller y laboratorio), Investigación y Ciencia, n.° 61, outubro de 1981, p. 126.
  6. R. M. EISBERG, Fundamentos da Física Moderna, Ed. Guanabara Dois S.A., Rio de Janeiro, 1979, p. 75 e 124-30. A expressão dupla personalidade é referida por Eisberg para a radiação eletromagnética (p. 75).
  7. E.E.SNYDER, ibid., p.22.
  8. S.DRAKE, La manzana de Newton y el Dialogo de Galileo, Investigation y Ciencia, n.° 49, outubro de 1980, p.108.
  9. J.OSADA, Evolução das idéias da física, Ed. Edgard Blücher Ltda, São Paulo, 1979, p.23.
  10. Este artigo foi escrito em 1983.

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