A Pesquisa e a Formação do Profissional em Psicologia

framesAnete A. Souza Farina

Integração I(1):53-5,1995

 

Para que se possa entender o que está acontecendo neste momento, dentro desse contexto social, com relação à pesquisa, vamos comparar, por exemplo, a produção do conhecimento no Brasil em relação à observada na Europa ou nos Estados Unidos. A Europa tem universidades de setecentos anos e, os Estados Unidos, de quatrocentos. E o Brasil? O primeiro curso superior em São Paulo é o do Largo São Francisco, que deve remontar a mais ou menos cento e sessenta anos. Quer dizer, nós estamos muito novos nisso tudo. Se tomarmos a USP como referencial, posto que ela representa a primeira universidade pública instalada em São Paulo, há cerca de sessenta anos, notaremos que poucos são os cursos mais velhos do que isso, como por exemplo, a Escola Politécnica, que tem cem anos. Tudo isso é muito recente. Então, fico imaginando a situação da universidade particular que acaba sendo pior em relação a tudo isso. O incentivo à formação, o incentivo à pesquisa e à extensão, vemos que é muito pequeno. Se já é pequeno nas universidades públicas, que dizer nas particulares? Assim, nós estamos concorrendo com alguns processos que vão exigir, creio, das gerações envolvidas, um empenho muito grande, tanto por parte dos professores das universidades ¾ e em especial, os da São Judas, ¾ como também, e principalmente, por parte dos alunos, que serão os nossos seguidores. E eu espero que venham ser bons seguidores, que sejamos então nós as matrizes de bons seguidores.

Pensando desta forma, vocês serão o futuro, e é mais para vocês que eu quero falar. Vocês são o futuro da ciência; vocês representam o futuro, enquanto empenhados na própria formação; vocês são o futuro da transformação social, pois não há quem não tenha observado que a repetição de modelos, a repetição de uma receita importada, que compete a uma outra realidade que não a nossa, pouco ou nada está valendo. Só existe um jeito de alterarmos tudo isso: através da produção de conhecimentos. Isso só é possível se todos se empenharem nesse sentido. Hoje a formação de vocês não se reduz apenas à reprodução de um conhecimento já preestabelecido, dentro de um programa fechado de formação, e para por aí. Quero dizer que o profissional do futuro é aquele que deverá ter competência para entender as transformações sociais de um país jovem, principalmente no tocante à Psicologia (ela mesma de tenra idade) e encaminhar suas propostas para a construção de uma ciência que atenda as necessidades de todos e não só de uma minoria abastada; saúde não é privilégio de uma classe, é um estado a que todos têm direito. Entender a sociedade acaba sendo uma necessidade de cada um de nós, mas principalmente dos profissionais da Psicologia. Eu estou falando sobre a pesquisa, mas antes de mais nada, chamando a atenção de vocês, nosso futuro, para que tenham sempre em mente essa questão. Por exemplo, nós observamos que com a produção científica, que começa muito precocemente, como já foi colocado pelo professor Armando, vocês criam uma forma diferente de fazer a leitura da realidade, não mais aceitando as coisas como elas chegam, mas até questionando estas coisas da maneira como elas estão e buscando dentro desse contexto, dessa realidade, a aproximação com as teorias, porque vocês sabem que essas coisas evoluem, se transformam.

Outro dia estávamos fazendo um estudo com o pessoal do quinto ano da área de seleção e pegamos um livro publicado em sessenta e dois. Ele dizia que o recrutamento devia ser um processo tão chamativo, a ponto de incitar as pessoas a sair de uma empresa e ir para outra. Hoje, ao ver isso, a gente ri, pois com a escassez de empregos não se observa a necessidade de recrutamentos tão elaborados. Isso foi em sessenta e dois! Vejam como mudou! E se o cientista ou profissional com esse olhar científico não estiver preparado, não estiver consciente da realidade em que está inserido, incorrerá em erros absurdos e tentará manter um padrão de comportamento profissional fora de propósito. Quem perde com isso é o próprio profissional, a sociedade e até a ciência. Então, com relação a isso, o que podemos fazer? Acho, em primeiro lugar, que esse deverá ser um trabalho de paixão; um sentimento profundo e generalizado que perpassando o corpo diretor, o docente e o discente, una essa trindade numa vigorosa e incontida marcha rumo ao conhecimento. Certamente, existe a dificuldade financeira; ela não é exclusiva da universidade particular, atinge e obstaculiza também as públicas, mas se faz sentir mais pesada na instituição particular. Vejo, contudo, que aqui na Universidade São Judas há um grande empenho para suplantar estas barreiras. Para nós, esta disposição é o que pode haver de mais desejável. Essa disposição apaixonada por parte da direção é fato notório. Caberá ao corpo docente e ao discente fazer o restante. Ainda que cada um concorra com sua parte e tenha sua própria importância, o aluno, no entanto, ganha destaque especial porque, novamente, ele representa o futuro. Ele é o potencial que está sendo preparado para o amanhã. O seu envolvimento nesse processo tem um crédito capital. O processo não é só feito para ele, mas também por ele. O professor, também envolvido nessa questão, procura resolver a sua parte e tenta conquistar os alunos para essa compreensão. Mas os alunos, nós sabemos, estão envolvidos com outras tantas questões que igualmente reclamam, solicitam, exigem e limitam. Será necessário fazer uma escolha. Que seja a paixão a orientadora dessa escolha. Vamos ver, por exemplo, a questão das bolsas, que se é difícil no pós-graduação, quanto mais não será na graduação. Outra vez estamos vendo a barragem financeira atrapalhando nossos projetos. Resolver estas questões não é tão simples como possa parecer à primeira vista. O manejo de verbas em uma instituição é assunto não só complexo, mas também delicado, pelos riscos que envolvem suas múltiplas repercussões. Então, estou apelando novamente para a paixão, enquanto aguardamos, confiantes, a competência administrativa.

Dentro desse espírito, aqui na Universidade São Judas, onde estou há dois anos, conseguimos desenvolver um estudo piloto sobre o perfil do psicólogo dentro de uma organização, tendo por base a tese do professor Sigmar Malvezzi. Foi possível colher algumas informações tais como: o que o nosso psicólogo, dentro da organização, anda fazendo; e o que ele anda fazendo, para nosso espanto, é coisa muito inadequada, porque é muito parecida com o modelo de 1930 nos Estados Unidos. Só que estamos no Brasil e o ano é 1994. Num segundo momento, o quinto ano desenvolveu um trabalho de pesquisa, para o qual os vinte alunos que temos foram a campo. Alguns, no começo, não entendiam bem por que teriam de ir. Aos poucos foram se entusiasmando e o trabalho ganhou corpo. Agora, a pesquisa seria feita com um detalhamento maior, mais aprofundada, com roteiro próprio especialmente elaborado e restrita apenas aos campos de recrutamento e seleção. Os resultados confirmaram plenamente o que foi achado na primeira pesquisa. A atuação é inadequada para a nossa realidade. Não existe um trabalho criativo, só repetitivo; desconsideram a possibilidade da transformação. Uma outra falha verificada foi a disposição para enxergar-se a organização não como um todo, mas sim repartida em setores, algumas vezes estanques; e quanto aos indivíduos, os funcionários, tratados como elementos únicos, sem atentar-se para a vertente social. A formação destes gerentes foi investigada e, para nossa surpresa, verificamos que muitos deles eram formados em Psicologia. Estavam atuando numa área de Recursos Humanos, há algum tempo, mas completamente desvinculados dos anseios humanos. Mostrou-se aos alunos que esta ação meramente reprodutiva é muito pouco satisfatória; em certos casos, até negativa. Se estes profissionais tivessem dado mais atenção à pesquisa, o procedimento deles seria, por certo, bem diferente.

A universidade tem um compromisso sério com a sociedade. Um compromisso maior com a sociedade, que é não só o do ensino, ou da pesquisa, mas também o da prestação de serviços. Que significa isso? Significa formar bons profissionais, com uma visão científica capaz de perceber as transformações e elaborar soluções adequadas. A sociedade não é uma coisa parada, estática; ela se move, se transforma, e o profissional tem que estar atento para buscar as respostas. Se eu perguntasse para vocês: ¾ Quantas questões temos ainda para responder em relação ao homem e à sua existência dentro ¾ não precisa ser do planeta ¾ do Brasil? Vocês responderiam: ¾ Todas; temos todas as questões para serem respondidas. Então, se não começarmos a ficar atentos para isso e buscar as respostas dentro de um procedimento científico correto e adequado, ficaremos sem saber o que está acontecendo com esse homem. De nada se pode dizer que temos todas as respostas. Se assim fosse, nesse particular a ciência estaria acabada, morta e inútil. Mas também não podemos aceitar ficar eternamente no ponto de partida, no marco zero do nosso conhecimento. Temos feito algum progresso nesse sentido. Se o caminho é longo, nem por isso deveremos desanimar, a cada um cabe fazer uma parte, a sua parte. Além disso, já não se vê como profissional aquele que está restrito a uma prática a um conteúdo e a um princípio. O profissional, hoje, é polivalente. Ele deve ter visão aberta para muitos campos, interessar-se por muitos problemas, questionar e questionar-se a todo momento, dentro de um esquema científico de abordagem. Ele deve se organizar e organizar uma equipe, para encontrar as respostas ao que indaga deve partir para a pesquisa. Só assim poderá confiar nos resultados e sentir-se, por pouco que seja, afastado do marco zero. O compromisso com a pesquisa é fundamental. Esse compromisso é da universidade, do professor e do aluno. Novamente há de se ressaltar a importância dos alunos nesse propósito, visto que eles são as peças-chave nestas transformações; eles representam os elos e a continuidade para um futuro melhor.

Nós costumamos identificar recursos com verbas, com dinheiro, de uma forma quase exclusiva. Mas recursos abrangem mais coisas; e muitas vezes será possível, contando com outros recursos, superar e dispensar até mesmo o recurso financeiro. Vou contar uma experiência pela qual passei, porque tem a ver exatamente com essa colocação. Trabalhei numa escola particular, que oferecia uma dezena de cursos e não tinha mais do que três mil alunos. Essa estrutura impedia a escola de fazer muita coisa. Dinheiro para pesquisa, nem sonhando. No entanto, um grupo de professores dedicados, movidos pela força da paixão, juntaram algumas áreas e iniciaram um projeto de pesquisa que acabou resultando na publicação de duas revistas científicas: uma revista de Psicologia e outra de Ciências do Movimento. O surgimento destas revistas ocorreu, coincidentemente, ao tempo em que o ISOP, por falta de subvenção, encerrava a publicação dos Arquivos Brasileiros de Psicologia Aplicada, uma das revistas mais antigas, no Brasil, sobre matéria psicológica. Então, como é que estávamos produzindo o milagre? O governo fechava uma e nós criávamos duas! A reunião dos esforços, a vontade de produzir e sobretudo a crença na materialização do propósito permitiram o milagre. Percorremos empresas, pedimos ajuda, multiplicamos o pouco que havia com nosso trabalho e conseguimos as revistas. No entanto, sem paixão nada disso teria acontecido.

Eu acho que nós temos muitos problemas nesse país e não dá para culpar este ou aquele. Além do que, isso não resolve nada. Penso que cada um deve começar a fazer a sua parte, e se já começou, que não descuide dela e procure fazer o melhor. Esse processo não tem fim, porque parece haver uma infinidade de coisas a serem descobertas; mas se cada um contribuir com um pouco, nossa ignorância diminuirá consideravelmente, e isso certamente irá desembocar numa vida melhor.

Ainda com relação à pesquisa, podemos perceber o grande avanço que teve a pesquisa voltada para a tecnologia quando comparada com a dirigida para as humanidades. Se isso ocorreu na maior parte dos países, no Brasil a tendência também houve. Uma explicação possível seria dizer que a tecnologia é de aplicabilidade universal e portanto pode ser importada e utilizada sem nenhuma restrição: um aparelho de tomografia serve para o Brasil, para o Japão, para a Índia. Esta ausência de limitação geográfica foi importante no sentido de facilitar a expansão da tecnologia. Já no tocante às ciências humanas, a cultura entra como fator delimitante impossível de ser desconsiderado; quero dizer, as particularidades da cultura contam muito alto e em alguns países essa característica funciona como entrave, foi o nosso caso. Além disso, já como foi referido anteriormente, a importação e o uso imediato, sem os ajustes necessários, de modelos estrangeiros deve ter causado muito mais estrago do que benefício. Essa diferença entre povos e entre pessoas não pode ser desconsiderada, por isso a pesquisa em Psicologia, ficando mais restrita, fica também mais difícil num país sem grandes recursos. Além disso, deve-se considerar também a extensão territorial do nosso país. Se nós temos dentro de São Paulo, no mínimo, três culturas diferentes, imaginem então no Brasil inteiro! Compreender isso é fundamental. É tão fundamental quanto a gente conseguir importar ultrasonografia, a ressonância magnética e outras coisas nessa linha. Em termos de saúde, já vimos que ela se destina a todos. Todos têm direito a ela. Nosso compromisso é buscar respostas para os impedimentos à saúde. Mas até que ponto, pela importação e utilização de modelos antigos, mal adaptados à nossa realidade, não estaremos taxando determinados comportamentos como inadequados ou enfermos quando, em verdade, absolutamente não são? Então, em termos de pesquisa, eu convido todos os alunos a se aproximarem cada vez mais para trabalhar, sugerir temas, cooperar. Nós temos produzido coisas interessantes. O Centro de Psicologia Aplicada tem projetos que estão sendo desenvolvidos e que estão adaptados, enquanto processo, à formação do nosso corpo discente. Essa reunião é importante e imprescindível. Nós já contamos com o apoio da Universidade São Judas. Estamos esperando a contribuição de vocês.

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