A Relatividade Galileana

framesAlberto Mesquita Filho
Capítulo 14 do Livro
Os Átomos Também Amam
©
1984

 

 

1 — INTRODUÇÃO
Galileu

Imagine que você está num trem com duas armas na mão. Estas armas projetam, à distância, bolas perfeitamente elásticas numa velocidade de 10 m/s. O trem viaja a uma velocidade constante, num trecho retilíneo, sem curvas nem ladeiras e num local onde não existe aceleração da gravidade (Você está num mundo perfeitamente galileano).

Situado no meio de um vagão de 100 metros de comprimento e com paredes rígidas, você dispara ambas as armas, uma em direção à frente do trem e a outra no sentido oposto. Espera pelo retorno das bolas e nota que, decorridos exatamente 10 segundos, ambas o atingem. Conclui, então, que suas velocidades são iguais. Solicita ao maquinista que pare o trem e repete a experiência. Nota então que a velocidade do trem em nada influencia seus cálculos. Executa a experiência com o trem a várias velocidades constantes e conclui ser impossível, apenas com o material que dispõe e sem olhar pela janela, calcular a velocidade do trem. Tal e qual Galileu, diria: Todos os referenciais inerciais são igualmente "bons".

Alguns observadores externos ao trem, propõem-se a ajudá-lo, o que é possível posto que as paredes laterais do mesmo são de vidro. Sabem que você está cronometrando o lançamento das bolas; vivem também num mundo galileano (medidas de tempo independem do referencial). Utilizam-se de estacas, fincando-as em pontos estratégicos, ou seja, no local onde você estava quando disparou as bolas e no local correspondente ao choque das bolas com as paredes. Medem as distâncias entre as estacas, notando que a bola que caminha na mesma direção que o trem percorre um espaço maior do que aquela que o faz em sentido contrário: ou seja, em relação a um referencial externo ao trem a velocidade das bolas é diferente. Aparentemente, a metade traseira do trem encolhe e a metade dianteira expande. A parede dianteira foge da bola e a traseira aproxima-se da mesma. Nada disso é notado por quem estiver no interior do trem. Para estes, a sensação é a de que o trem está parado e os que se movem são os observadores externos.

Conhecedor da situação e da mecânica galileana, você recebe a informação exterior de que a bola dianteira percorreu 75 metros e a traseira 25 metros. Chega, então, à conclusão: em 5 segundos o trem percorreu 25 metros, sendo sua velocidade igual a 5 m/s. Após conferir o resultado, responda: Quem move-se a 5 m/s? O trem ou o mundo exterior ao mesmo?

2 — O EFEITO DOPPLER CORPUSCULAR

Aperfeiçoemos um pouco a experiência vista no item anterior. Coloquemos, no centro do vagão, duas metralhadoras capazes de projetar bolas elásticas a cada um segundo, num total de cinco bolas. Após 4,5 segundos a imagem fotografada, tanto do interior do trem, quando do exterior, é aquela mostrada na figura abaixo:

RelGali01

Dois observadores, colocados em cada uma das extremidades do vagão, anotarão os impactos das bolas contra as paredes e verificarão uma frequência igual a um impacto por segundo, o que seria de se esperar. No entanto, se o trem fosse aberto e observadores externos ao trem fossem estudar o impacto em superfícies fixas ao REFERENCIAL EXTERNO, estes notariam frequências totalmente diferentes. O observador situado à direita do esquema verificaria uma frequência maior do que um impacto por segundo; e aquele situado à esquerda, verificaria uma frequência menor do que um. Isto é o que seria de se esperar pelo visto no item anterior. Externamente ao trem as bolas traseiras evoluem a velocidade menor que as dianteiras.

A diferença de frequências observada é análoga ao chamado efeito Doppler da mecânica ondulatória. Ou seja, existe também um efeito Doppler na mecânica corpuscular. É suficiente estudar, ao invés de um único corpúsculo, um conjunto de corpúsculos em movimento.

O que aconteceria caso a velocidade do trem fosse superior à velocidade (no referencial fixo ao trem) de lançamento das bolas?

3 — A PROPAGAÇÃO DO SOM

Ao contrário de uma arma, que lança projéteis, uma fonte sonora vibra e transmite esta vibração para moléculas vizinhas, constituintes do meio aéreo que a circunda. Não podemos, neste caso, desprezar a movimentação do meio aéreo, como fizemos no item anterior, quando ignoramos sua existência.

Num referencial inercial, não faz muita diferença utilizar a arma do item anterior ou uma fonte sonora. Com o trem totalmente fechado e o meio aéreo viajando inercialmente com você, uma buzina poderia ser instalada no meio do vagão e os dois observadores nas extremidades do mesmo lhe informariam que a velocidade de propagação da onda sonora é a mesma nos dois sentidos, independentemente da velocidade do trem. Se, ao escutarem o som da buzina, estes acendessem uma lanterna informando o fenômeno aos observadores externos ao trem, a experiência descrita com as bolas poderia ser substituída pelo sistema atual. No caso anterior, o que se propagava era um corpúsculo, ou seja, a bola; agora, uma onda sonora; e o resultado não difere em nada.

Mudemos um pouco a experiência, de forma que a buzina possa ser ouvida pelos observadores externos. Instalemos uma buzina externamente ao trem, numa das paredes laterais, e que toque sincronicamente com a interna. Desprezando-se o vento, provocado pelo trem, constataremos que a frente de onda, responsável pela percepção inicial do som produzido, viaja numa velocidade que será sempre a mesma, desde que calculada em relação a um referencial fixo ao meio em que se propaga; e não depende da velocidade da fonte nem da velocidade do observador.

Vejamos a situação exterior ao trem. Dois observadores A e B, externos e equidistantes ao ponto em que a buzina começa a produzir o som (ponto de disparo), um situado em direção à frente do trem e outro à traseira, receberão o primeiro impacto sonoro simultaneamente. Porém, como a buzina continua a tocar, e o trem se move, eles deixam, com o tempo, de estarem equidistantes da fonte F; ou seja, esta fica cada vez mais próxima de A e mais afastada de B. Logo, as próximas ondas sonoras chegarão antes até A do que até B. E, num mesmo intervalo de tempo, A recebe mais ondas sonoras do que B. Ou seja, a frequência é diferente em ambos os casos. Este é o efeito Doppler ondulatório.

4 — UM TREM ABERTO

Vamos admitir agora que viajamos num trem aberto e que o ar, que nos envolve, está "fixo" em relação à terra firme. Possuímos, ainda, uma buzina no centro do vagão e dois observadores, situados nas extremidades do vagão, em cima do trem, vão nos informar quando começam a perceber as vibrações sonoras.

Como o ar está em repouso e a velocidade do som é constante em relação ao ar, e não à fonte, o som propagar-se-á com a mesma velocidade em relação à terra firme, em ambos os sentidos. No entanto, à medida que o som se propaga, o observador situado à dianteira do trem afasta-se do mesmo; ou seja, o som deve percorrer uma distância maior do que a que existe entre a fonte e o observador. O contrário ocorre com o outro observador. Logo, ambos ouvirão o som em tempos diferentes. Chamarei, a esse fenômeno, de "efeito Michelson-Morley" pois é o que estes autores ESPERAVAM encontrar para a luz caso a mesma se comportasse tal e qual um fenômeno ondulatório "comum".

A mesma experiência efetuada com o trem aberto e com bolas disparadas, desprezando-se o atrito com o ar, nos revelaria que ambos os observadores receberiam as bolas ao mesmo tempo.

Esta experiência "poderia" ser utilizada como "tira-dúvidas" ao se analisar fenômenos que propagam-se de maneira desconhecida, a ponto de não sabermos se sua origem é do "tipo" corpuscular ou ondulatória.

5 — A EXPERIÊNCIA DE MICHELSON-MORLEY

Michelson e Morley tentaram provar que a luz, a semelhança do som, exigia um meio para se propagar: o éter. E imaginaram que a Terra, em seu movimento, não transportasse o éter. Ou seja, o éter, tal e qual o ar que envolvia o trem, no item anterior, seria imóvel em relação ao espaço sideral. "Sendo a luz um fenômeno ondulatório", esperavam encontrar uma velocidade constante em relação ao éter; e, graças ao movimento da Terra, observadores equidistantes a uma fonte de luz deveriam receber a luz em tempos diferentes. Ou seja, em relação a um referencial localizado em terra firme, a velocidade da luz seria diferente conforme a direção considerada.

Qual não foi a surpresa quando constataram, através de um instrumento muito "bem bolado", o interferômetro de Michelson e Morley, que tal não acontecia.

A teoria ondulatória da luz estava em seu auge e ninguém teve a coragem de negá-la; ou ninguém talvez tenha suspeitado que Newton, dois séculos atrás, poderia estar com a razão. As tentativas para explicar o achado de Michelson e Morley foram todas focalizadas para a estrutura do éter. Afinal, ele poderia estar se movendo junto com a Terra, tal e qual o ar no interior de um trem fechado.

Mas a coisa não era tão simples assim. O éter, que fora criado para sustentar a teoria ondulatória da luz, estava atrapalhando-a tremendamente. E a saída para este dilema foi encontrada por Einstein: o éter não interfere na propagação da luz. Esta propaga-se a uma velocidade sempre constante, independentemente do referencial, do observador, da fonte e de tudo o mais. E esta constante era mais do que isso: era uma constante universal c que encaixava-se, perfeitamente, com as equações do eletromagnetismo.

Bolas para a relatividade galileana!

Bolas para Newton e sua teoria corpuscular da luz!

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