Alberto Mesquita Filho
Editorial - Integração VII(25):83-4,2001
No dizer de Etienne Gilson, tudo pode ser constatado cientificamente, menos o princípio de que tudo pode ser constatado cientificamente.
Venâncio Barbieri [1]
Não é raro encontrarmos, em livros relativos às ciências naturais, a afirmação —ou pelo menos a intenção de se transmitir a idéia— de que não havia ciência na Antiguidade. Se não num sentido absoluto, pelo menos a contemplar o significado moderno adotado à palavra ciência, originário da observação do comportamento dos produtores de conhecimento renascentistas e pós-renascentistas.
Que a ciência evoluiu e transformou-se profundamente com o Renascimento é algo que não podemos questionar. Daí a excluirmos homens como Arquimedes, Eratóstenes e Herón, hábeis experimentadores, bem como Tales, Demócrito e Aristóteles, excelentes teorizadores, do rol daqueles que produziram gigantescas e importantes contribuições para a ciência, vai uma distância muito grande.
Com frequência considera-se como ciência algo a respeitar o método científico, afirmação esta que, conquanto verdadeira, deve ser interpretada com muito cuidado
[2]. Por outro lado, atribui-se a Descartes a “descoberta da existência” de um método científico. Ora, quero crer que Descartes não tenha inventado um método, mas que simplesmente tenha percebido que poderia considerar como cientistas tão somente aqueles que, em suas aventuras destinadas à produção de conhecimento, respeitassem, quase que de maneira intuitiva, determinadas regras fixas por ele apontadas.
Quando então teria surgido o espírito científico? E vou além: A partir de quando o homem tornou-se um ser criativo, não apenas, mas também, a produzir conhecimentos científicos?
Uma coisa que com frequência me preocupa quando de minhas "viagens" e/ou “encucações” filosófico-científicas, reside na distinção entre ciência e conhecimento. Se perscrutarmos os dicionários, perceberemos que ciência deriva de conhecimento, mas não são sinônimos perfeitos. Até que ponto o homem primitivo e ainda sem criatividade manifesta (se é que este homem existiu) fazia ciência? Admitindo-se que este homem tenha existido, certamente ele aprendia por tentativa e erro. A rigor, ele não construía o cenário, ele não manipulava os objetos de uma maneira racional, ele não executava experiências no sentido que hoje damos ao termo. Ele simplesmente observava e/ou vivenciava acontecimentos, num cenário do qual fazia parte. E com isso adquiria conhecimentos, mas, a meu ver, não fazia ciência.
Talvez com este "ensaio" eu esteja entendendo melhor o porquê de Chalmers, em seu livro "O que é ciência afinal?", repetir por inúmeras vezes que a ciência NÃO começa pela observação. O que não significa dizer que ela não se apóie em dados observacionais. A ciência é o estudo da natureza, sim, mas não é uma propriedade da natureza e sim uma aquisição do ser humano. Fazer ciência é observar a natureza através de experiências, ou seja, através da procura do que se esconde por trás daquilo que simplesmente se nos mostra como observável. Concordo que ciência implica no ato de descobrir e/ou inventar, porém nem todas as descobertas implicam numa atividade científica, mesmo quando estas descobertas venham a se incorporar a nosso cabedal científico.
Por que o homem sentiu a necessidade de descobrir e inventar? Diria que este sentimento de evoluir para uma atividade criativa processou-se à medida que o homem já formado —já dotado do potencial criativo, já adaptado a uma natureza até então aparentemente inóspita e já possuidor de uma infinidade de conhecimentos que adquiriu pelo simples observar e/ou experimentar a natureza, enquanto a natureza ditava normas evolutivas e a preservar aqueles que melhor se saiam nestes testes— passou a questionar a realidade através da teorização e a executar experiências. Sem dúvida esse sentimento surgiu a partir do momento em que o homem passou
a maravilhar-se com a observância da regra da repetitividade, algo que costumo chamar por princípio científico fundamental. Com efeito, o homem começou a perceber que poderia utilizar-se de sua atividade criativa, no sentido de criar uma ciência, à medida que notou que os fenômenos se repetem. Pois do contrário não faria sentido pensarmos em experimentação.
A.M.F.
Referências:
[1] Barbieri, V.:
O espírito universitário, Integração III(8):44-,1997.
[2] Mesquita F°., A.: Teoria sobre o método científico, Integração II(7):255-62,1996.
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