Calor específico e física clássica

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Alberto Mesquita Filho
Mensagem 11819 postada na Ciencialist
em 2 de novembro de 2001


Who sees the future? Let us have free scope for all directions of research; away with all dogmatism, either atomistic or antiatomistic!
Ludwig Boltzmann


Leia também o Diálogo Ciencialist que se seguiu à apresentação deste artigo.


Há os que afirmam que a física clássica não consegue explicar, de maneira satisfatória, muitas coisas relacionadas aos valores encontrados experimentalmente para o calor específico de determinadas substâncias químicas. O assunto é muito extenso e vou expor aqui apenas as mais comentadas dentre essas críticas, exatamente aquelas mais fundamentais e mais elementares. E são essas, também, aquelas que têm se mostrado sem justificativa alguma a não ser a de confundir a cabeça do jovem estudante, sem nada de útil acrescentar. Se houver interesse, poderei dizer, de maneira mais light, e no nível conjetural, o que penso sobre as demais críticas e que, juntamente com o problema do espectro de irradiação do corpo negro, colaboraram para que se tentasse despersonalizar a física clássica, objetivo esse que, sob certos aspectos, chegou a ser atingido.

A idéia de expandir o modelo mecânico clássico para a explicação das propriedades termodinâmicas é anterior à própria termodinâmica e teria surgido com Newton, influenciado não apenas por Boyle, mas também pelas experiências de Torricelli orientadas por Galileu. A idéia somente começou a ser levada a sério em meados do século XIX, quando alguns físicos, de estirpe não paradigmática, começaram a se auto-questionar e a perceber que os químicos não estavam brincando quando assumiram, em definitivo, a idéia da existência de átomos. Esse assunto é discutido com mais detalhes em Doutrinas filosóficas e teorias científicas.

ClausiusNotaram então estes físicos, muito especialmente Clausius, Maxwell e Boltzmann, que a idéia de átomo, em física, já era mais do que centenária, remontando a Boyle, Newton, Bernoulli e Herapath, dentre inúmeros outros. Não obstante, a idéia somente começou a ser levada mais ou menos a sério, e assim mesmo com bastante desconfiança, a partir dos trabalhos desses três gigantes da física do século XIX. Os dois primeiros desenvolveram o que hoje chama-se Teoria Cinética dos Gases e Boltzmann, como referido por Gibbs, teria sido o fundador da Mecânica Estatística, bastante influenciado pela obra de Maxwell.

Para resumir o que há de interesse no assunto, diria que ao cedermos uma quantidade Q de calor para um sistema, aumentamos a sua energia interna do valor ΔE = Q. O calor específico molar médio seria então este valor Q dividido pelo número de moles do sistema e pela variação ΔT da temperatura. Em condições limites chegamos ao calor específico na temperatura considerada (ΔT tendendo a zero). Os limites mais comuns são aqueles efetuados a pressão constante e a volume constante.

Após os trabalhos de Mayer e Joule, relativos ao equivalente mecânico do calor, começou-se a pensar nessa energia interna como algo relacionado ao movimento das partículas descritas pelos químicos como átomos e moléculas, surgindo daí a teoria cinética dos gases. Uma crítica recente a essa identidade entre energia interna e energia mecânica, de minha autoria, pode ser encontrada em Variáveis escondidas e a termodinâmica, mas não vou discutir aqui o assunto sob esse aspecto, pois que trata-se de um tema bastante polêmico, estando além do escopo desta mensagem.

MaxwellProcurou-se então descobrir de que forma essa suposta energia, equivalente à mecânica, seria distribuída entre átomos e/ou moléculas constitutivos do sistema em apreço. Isso foi possível graças a relações matemáticas, compatíveis com o modelo mecânico newtoniano, encontradas em meio aos estudos referentes a calores específicos a volume e a pressão constante. Percebeu-se então que em determinados casos, tudo se passava como se a energia incorporada fosse distribuída em compartimentos que às vezes seriam em número de três, outras vezes em número de cinco ou, ainda, seis ou sete etc.

Percebeu-se então que para gases monoatômicos, a energia incorporava-se apenas como energia de translação, ou seja, com suas três componentes segundo os eixos x, y e z (coordenadas cartesianas). Lembro ainda que a energia cinética relaciona-se com o quadrado da velocidade, que é um vetor, e é sempre possível pensar-se em frações da mesma segundo as componentes vx, vy e vz do vetor velocidade. Para gases diatômicos os compartimentos a compartilharem a energia cedida ao sistema poderiam ser iguais a cinco, pois além da translação o efeito agraciaria também a rotação, segundo dois eixos a passarem pelo centro de gravidade.

Para os sólidos percebe-se, pela análise da lei de Dulong-Petit, que a energia provavelmente distribui-se segundo seis desses compartimentos e isso estaria em acordo com a idéia de que os átomos dos sólidos oscilam, em torno de uma certa posição fixa, como se fossem osciladores harmônicos tridimensionais. Algo útil, porém nada mais do que um modelo, pois quero crer que até hoje ninguém observou essas oscilações como tais, a não ser por seus efeitos. Teríamos então três termos correspondentes à energia cinética e três outros correspondentes à energia potencial, para cada uma das coordenadas cartesianas consideradas.

Essa idéia de relacionar a distribuição de energia com o número de possibilidades (graus de liberdade do sistema) é de Maxwell e a equivalência numérica distributiva, ou seja, a idéia de igualar a fração da energia que vai para cada um dos "compartimentos", não é nada trivial, mas demonstrável matematicamente através do teorema da equipartição de energia.

BoltzmannAté que ponto podemos transportar essa idéia matemática para a física? Não é necessário dizer que não houve consenso entre os físicos do século XIX. Quero crer que Boltzmann foi quem mais esteve próximo de entender, com os recursos da época, a realidade física do teorema da equipartição. Tragicomicamente, isso causou-lhe sérios aborrecimentos, que o teriam levado ao suicídio. A verdade é que Clausius, Maxwell e Boltzmann morreram precocemente e qualquer tentativa de explicar classicamente a estrutura íntima da matéria por artifícios não puramente matemáticos, ficou apenas na intenção, pois os físicos que se formaram a seguir deixaram de lado essa preocupação. Via de regra, passaram a adotar o operacionalismo e a não questionar o que aparentemente dá certo sem que se saiba onde, quando e nem porquê. Se não aprenderam física com Boltzmann, pelo menos aprenderam, com o seu suicídio, a evitar os aborrecimentos, que certamente são inerentes à criatividade (já citei várias vezes, aqui na Ciencialist, a opinião de Mário Schenberg, a respeito).

Vamos, então, aos fatos:

Eisberg, por exemplo —aquele mesmo que tem um tratado de Mecânica Quântica e que, durante muitos anos, foi o único traduzido para a língua portuguesa,— ao comentar o calor específico de moléculas monoatômicas [num livro de física básica escrito em parceria com Lerner — Física, fundamentos e aplicações], estranha o fato de a energia absorvida não se transformar em energia cinética rotacional das moléculas monoatômicas, o que seria de se esperar de acordo com os seus conhecimentos a respeito daquilo que, estranhamente, chama por "física clássica ou newtoniana", e não sei que outro nome poderia dar a não ser "física clássica na visão de um físico moderno", como fiz em mensagem recente. Na página 437 do volume 2 diz: A mecânica newtoniana não esclarece por que isto não ocorre. A mecânica quântica sim, mas não podemos chegar a esse nível de esclarecimentos nesse momento.

sinucaEu tenho a impressão que o Eisberg (ou teria sido o Lerner?) nunca jogou sinuca ou bilhar. Se tivesse jogado, teria percebido que classicamente uma bola de bilhar jamais transfere movimento de rotação a outra bola de bilhar, principalmente se a bola for perfeita e a mesa idem. Aqueles "efeitos" miraculosos, com que os jogadores de sinuca, no estilo do Rui Chapéu, encantam a platéia, na realidade são provocados pelo contato "taco-bola" e tais que a direção do impulso não passe pelo centro de massa da bola. Não obstante, quando esta bola, mesmo com esse "efeito", choca-se com outra, ela não transfere momento angular mas, tão somente, momento linear. E isto é algo totalmente explicável pela mecânica clássica, sem que tenhamos necessidade alguma de apelar para os gnomos quânticos.

Que o Eisberg não conheça o jogo de bilhar, tudo bem, vamos dar um certo desconto. Mas não ter lido Boltzmann parece-me ser algo inadmissível para quem se propõe a comentar criticamente a sua obra. Pois se tivesse lido teria pensado duas vezes antes de fazer uma crítica tão ingênua. Pois na página 332 da versão que possuo do livro Lectures on gas theory de Ludwig Boltzmann, Dover Publications, N.Y., 1995, lê-se o seguinte:

If each molecule is constructed absolutely symmetrically with respect to its center of gravity —or, still more generally, if it has the form of a sphere whose center of gravity coincides with its midpoint— then indeed each molecule can make arbitrary rotations around an arbitrary axis passing through its midpoints; but the velocity of this rotation cannot be altered in any way by collisions between molecules. If all molecules were initially not rotating, then they would remain so for all time. On the other hand, if they were initially rotating, then each molecule would retain its rotation independently of all the others, although this rotation would exert no observable action.

Dizem que Maxwell não aceitou essa explicação de Boltzmann em virtude, unicamente, de tratar-se de uma hipótese ad hoc (vide Physics in the nineteenth century, de R.D. Purrington). Mas... e o teorema da equipartição? Não seria também um ad hoc a dar certo em determinadas condições. Por outro lado, e fisicamente falando, a hipótese de Boltzmann não me parece ter nada de ad hoc, pelo menos da forma como aprendemos hoje tanto a teoria cinética dos gases quanto a mecânica estatística clássica. Sem dúvida, o Eisberg pisou na bola, e nem foi uma bola de bilhar, pois esta ele demonstra não conhecer.

Vejamos então o que diz o Tipler... Incrível!!! Tipler também nunca jogou bilhar nem sinuca e também não leu o livro do Boltzmann. Na página 544, item 19-8 da minha versão (Física, volume 1, Mecânica, oscilações e ondas, termodinâmica, LTC Editora) ele afirma: O teorema da equipartição da energia não oferece explicação para esse comportamento... das moléculas monoatômicas que, aparentemente, não giram em torno de qualquer dos três eixos perpendiculares possíveis no espaço. E duas páginas antes (p. 542) ele teria afirmado: Estes fatos intrigantes explicam-se com facilidade quando levamos em conta a quantização de energia.

Ou seja, a teoria quântica explica com facilidade por que não ocorre aquilo que classicamente, e segundo Boltzmann, não deveria ocorrer. Como diria o Léo: :-))))))))))))))))))))))))))))))))))))))))))))))))))))))))))))))))))). Parece piada mas é verdade.

anihalterVoltemos ao Eisberg: Na página 438 ele estranha o fato de a molécula diatômica não girar em torno do diâmetro de ambos os átomos, o que segundo Boltzmann (p. 333, referência acima) é exatamente o que deveria se esperar classicamente. Pense, neste caso, em duas bolas de bilhar fixas por uma pequena haste cujo prolongamento passe pelo centro de massa de ambas, como se fosse um halter feito com duas bolas de bilhar. Com essa imagem em mente, procure agora imaginar como seria, segundo a física clássica, um estudo de colisões, em duas dimensões (numa mesa de bilhar, por exemplo), entre bolas desse tipo. A seguir extrapole o resultado para três dimensões. O gif animado ao lado poderá ajudá-lo a entender o modelo proposto por Boltzmann.

Eisberg atribui então um comportamento clássico, a existir apenas na sua cabeça, e conclui que a molécula não segue esse postulado da "física clássica na visão de um físico moderno" graças, tão somente, e segundo sua citação, à mesma propriedade quântica que impede uma molécula monoatômica de girar em torno de um diâmetro de seu único átomo. Sem dúvida, isso parece brincadeira, mas qualquer um pode constatar que trata-se de uma "verdade" repetida às pencas e em uma infinidade de livros (o de Eisberg, o de Tipler e centenas de outros livros "sérios") a se prestarem como cartilha para que o jovem estudante aprenda, desde cedo, a vilipendiar uma física clássica que, como tal, somente foi devidamente respeitada de Galileu a Planck (o último dos grandes clássicos).

Ao comentar o comportamento dos sólidos, lê-se o seguinte no livro do Eisberg: ... a maioria dos sólidos não-metálicos está de acordo com a lei de Dulong-Petit. Mas é surpreendente que a maioria dos metais também esteja de acordo, porque sabe-se que os metais contém elétrons livres em número comparável ao de átomos. Se esses elétrons agirem como moléculas de um gás ideal, eles contribuirão com uma quantidade adicional... para a capacidade térmica do sólido, dando uma capacidade térmica total por átomo significativamente maior do que a prevista pela lei de Dulong-Petit.

Sem comentários. Já disse recentemente o que penso a respeito do decreto de Lorentz com seu modelo dos elétrons livres ou dos "fluidos elétricos incompressíveis". Apenas repito o que disse na época: Revoguem o decreto de Lorentz e todos os fenômenos físicos acabarão por serem explicáveis classicamente e sem a necessidade da introdução de recursos provenientes da gnomologia.

Bem, por ora é só. Ficou faltando muita coisa, em especial aquela história mal contada das vibrações, apresentadas por moléculas de determinados gases e que surgiria com a elevação de temperatura; e/ou nas discussões a supostamente explicarem o espectro de irradiação dos corpos negros. Mas espero ter mostrado que tem muita gente brincando com coisa séria. Ou eu muito me engano, ou não se pode levar muito a sério o que dizem esses pretensos defensores fanáticos da física moderna; ou então aqueles não apenas pretensos, mas também inescrupulosos, combatentes de uma "física clássica" que, da maneira como a expõem, sequer existe.

Em tempo: Antes que me acusem da falta de didática, gostaria de esclarecer que não tive a preocupação em ser didático nesta mensagem mas, simplesmente, de expor aspectos relativos ao assunto "calor específico e física clássica" para quem já estudou alguma vez na vida, pelo menos em livros de física básica, o tema apresentado (teoria cinética e/ou mecânica estatística). Havendo interesse dos demais por alguma explicação extra, é só dar um alô que procurarei responder. Se não conseguir, certamente deverá haver alguém aqui na Ciencialist que domine o assunto de maneira melhor do que a minha e em condições de complementar e/ou corrigir os meus argumentos.

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Leia também o Diálogo Ciencialist que se seguiu à apresentação deste artigo.


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